Janeiro 31, 2023
Mulheres se mobilizam pelo direito de existir como pescadoras artesanais
Por: Beatriz Ribeiro
O TEMA:
Historicamente invisíveis e sem direitos adquiridos dentro da cadeia de produção da pesca artesanal, mulheres que trabalham como pescadoras e marisqueiras nas quatro regiões costeiras do Brasil estão mobilizadas para pôr fim a décadas de descaso. Na semana passada, juntamente com cerca de 20 pescadores, elas participaram, em Brasília, da “Oficina Nacional de Construção Coletiva por uma Nova Política Pesqueira”. Apoiado pela Oceana, esse encontro resultou na “Carta de Brasília” – uma minuta que propõe atualizar a Lei da Pesca -, protocolada nesta 2ª feira (30) nas presidências da República, da Câmara dos Deputados e do Senado.
Um grupo de cerca de 20 lideranças de mulheres pescadoras aproveitaram a realização do encontro nacional para dar continuidade aos debates iniciados com outras mulheres nas 10 oficinas regionais realizadas de agosto a outubro de 2022 e sistematizarem as principais demandas específicas das pescadoras artesanais do país.
Dentre suas principais reinvindicações estão o reconhecimento e a valorização das pescadoras; o atendimento especializado à saúde; a desburocratização do registro profissional; o fim da violência institucional de gênero realizada por servidores despreparados; a ampliação do seguro defeso; e apoio ao fortalecimento do coletivo de mulheres que vivem em comunidades tradicionais. Ao todo, são 20 demandas endereçadas aos poderes Executivo e Legislativo.
“Nós somos esquecidas pelo poder público em todas as esferas, municipal, estadual e federal. Hoje, vejo as portas se abrindo para nós, pescadoras, porque estamos construindo, na base, um projeto de lei para a pesca com a chance de dizer o que me dói e o que me fere como mulher pescadora”, destaca Jadeir Regina Nascimento, pescadora em Maxaranguape (RN) e representante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).
No quinto mandato como presidente da Colônia de Pescadores de seu município, Jadeir Regina sente que, pela primeira vez em sua jornada de pescadora, existe a possibilidade de reconhecimento e de identidade profissional. Ela conta que, em outros tempos, tinha vergonha de dizer que era pescadora porque havia nítido desprezo da sociedade por mulheres que estão na lida da pesca. Hoje, enche-se de orgulho e pertencimento. A cerimônia de formatura em Psicologia de uma das filhas fez com que ela percebesse a dimensão do seu próprio fortalecimento. “Na diplomação, ela levou uma rede e disse: ‘Mainha, através da pesca, você formou a sua filha´. É muito orgulho!”, emociona-se.
SAÚDE É URGENTE
O respeito e a valorização ao pertencimento à cadeia produtiva da pesca é a busca de milhares de pescadoras e marisqueiras do Brasil. Presidente de Associação de Pesca em Cariacica (ES), Neia Vieira critica as lacunas da atual Lei da Pesca, que não abarca, com rigor, a mulher e suas especificidades. “A gente quer esse reconhecimento como pescadora artesanal, independentemente se a mulher tece uma rede, vai para o mar pescar, limpar ou fazer o beneficiamento do pescado, estendendo-se à cata de marisco”.
Neia Vieira também traz, com força, a preocupação com a saúde da pescadora, que, geralmente, é mãe, alimenta, cuida e educa os filhos. Acorda antes do sol nascer e vai até o fim da noite, sem tempo para monitorar a saúde. Além dos problemas de pele pela exposição aos raios ultravioletas, Neia aponta os riscos do ambiente marinho, quando a pescadora entra em contato, por vezes, com poluentes e possíveis ataques de animais. “Tem ainda o contato com o fogo no caso das marisqueiras, que convivem com o calor e a fumaça, os movimentos repetitivos que causam a Lesão do Esforço Repetitivo (LER) e uma série de problemas ergonômicos provocados pela posição de agachamento, a exemplo da hérnia de disco, de dores na lombar e no nervo ciático”.
Nascida e criada numa família de pesca no litoral norte do Rio Grande do Sul, Venina dos Santos Moraes nunca teve tempo para cuidar da saúde até se deparar com um diagnóstico de câncer. “A vida era filho, casa, pesca e estresse. E a gente nunca foi olhada. Graças a Deus, estou curada e disposta a lutar para que o governo crie dentro do Ministério da Pesca, uma Secretaria da Mulher Pescadora”.
Viviane Machado Alves, também do Rio Grande do Sul, acredita que a angústia de décadas está perto do fim. Ela considera que ser pescadora artesanal está para além do ofício em si. “A gente pesca, cultiva, beneficia, vende e, acima de tudo, somos também guardiãs do meio ambiente. Não somos somente apoio de pesca. Queremos essa visibilidade. O momento é agora, com esse novo governo federal que anuncia que governará com o povo e para o povo. Então, não há como não estarmos presentes nessa nova legislação para a pesca”.
“Vou usar as palavras da mana Marly Lúcia, do Pará, o verbo do momento é esperançar. Olhar para as comunidades, para as pescadoras e pescadores, mulheres e homens do mar, dos mangues e da pesca. Enxergá-los como legítimos donos, pela capacidade e pelo conhecimento que possuem, para construir uma lei de pesca moderna, que enxergue essas pessoas de verdade, sem aqueles artigos omissos que não dizem nada. E, sobretudo, que coloque quem estiver no poder na condição de cumprir o que a lei determina”, aponta Miriam Bozzetto, analista de campanhas da Oceana.
Os 20 pontos de reinvindicações das pescadoras artesanais
- Respeito à identidade de pescadora;
- Fim da violência institucional causada pela falta de preparo e treinamento dos profissionais do governo que atendem as pescadoras e marisqueiras;
- Garantia do direito a mais espaços de comercialização dos produtos;
- Criação de programas de atenção especializada à saúde das mulheres pescadoras e marisqueiras, inclusive para a saúde emocional, com profissionais de saúde treinados e qualificados para atender as comunidades pesqueiras e que se estendam a toda a cadeia produtiva da pesca;
- Criação de programas de incentivo à agregação de valor aos produtos;
- Desburocratização dos Registros de Pescadora e Marisqueira (emissão de RGP);
- Reconhecimento pelo INSS, das doenças ocupacionais das mulheres na pesca e mariscagem;
- Criação de programas de incentivo à independência financeira;
- Criação de programas de formação e capacitação para novas lideranças femininas na pesca e para seus/suas filhos/as;
- Garantia de participação e direitos nos espaços de tomada de decisão, como conselhos, comitês, grupos de trabalho, dentre outros;
- Reconhecimento à cultura e aos saberes tradicionais – inclusive para fins de pesquisa e demais ações das universidades e dos governos;
- Fim das ameaças contra as mulheres nos territórios de pesca e maretórios;
- Fortalecimento dos coletivos de mulheres que vivem em comunidades tradicionais pesqueiras;
- Garantia de cotas nos cursos universitários para mulheres da pesca;
- Ampliação do seguro defeso para mulheres marisqueiras;
- Visibilidade e reconhecimento para as mulheres das águas e dos mangues;
- Fim do racismo e do machismo;
- Direito à aposentadoria, auxílio-doença, licença-maternidade e todos os demais direitos, sem precisar de documentação complementar dos homens (maridos, filhos, irmãos);
- Criação de um banco de dados único das pescadoras, para que seu histórico de pescadora/marisqueira/trabalhadora da pesca seja reconhecido, sem necessidade de comprovações complementares;
- Garantia de proteção e reconhecimento dos territórios e maretórios.
Saiba mais sobre as 10 primeiras oficinas