Outubro 28, 2024
“Se você se preocupa com a perda de biodiversidade na terra, você deve querer oceanos abundantes”
Como parte das celebrações dos 10 anos da Oceana no Brasil, entrevistamos Andrew Sharpless, responsável por liderar a organização globalmente por mais de vinte anos – de 2003 a 2024.
Em 2015, ele lançou o livro A Proteína Perfeita: guia para amantes de peixes de como salvar os oceanos e alimentar o mundo, com prefácio assinado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. A obra foi a inspiração para os intensos diálogos e trocas de experiências que ocorreram durante o evento científico promovido pela Oceana no Colacmar e CBO 2024, que contou com a presença e participação de Sharpless. Também batizado como “Proteína Perfeita”, o seminário apresentou uma discussão que, mesmo quase dez anos depois de publicado o livro, ainda se mostra atual e pertinente, já que os desafios de quem se dispõe a proteger os oceanos para alimentar o mundo seguem cada vez mais urgentes. “Deveríamos estar fazendo tudo o que pudermos para alimentar [as milhões de pessoas que passam fome] no futuro”, ele argumenta.
Nessa edição especial do Oceana Entrevista, Andrew Sharpless fala o que é, afinal, o conceito de “proteína perfeita”, mas também sobre as dificuldades e as oportunidades na conservação dos ecossistemas marinhos e sobre o trabalho realizado pela Oceana no Brasil ao longo desses 10 anos.
Você pode nos explicar a ideia do conceito de “proteína perfeita”?
A proteína perfeita refere-se ao fato de que os frutos do mar, capturados em pescarias bem administradas, podem desempenhar um papel extremamente construtivo no futuro do nosso planeta e na subsistência de centenas de milhões de pessoas e pescadores costeiros. E essa oportunidade não é bem compreendida, mas é algo muito importante.
Podemos alimentar um bilhão de pessoas com uma refeição saudável de frutos do mar, todos os dias, para sempre, a partir de um oceano reconstruído. E estamos caminhando agora para cerca da metade disso. Há muitas pessoas passando fome no mundo, centenas de milhões delas. Deveríamos estar fazendo tudo o que pudermos para alimentá-las no futuro.
Número dois: proteína marinha. Frutos do mar selvagens e saudáveis são uma fonte de proteína segura para o clima. Ela não gera gases que forçam o clima, comparada com a produção de carne bovina . Então, se você quiser alimentar as pessoas com proteína animal e estiver preocupado com as mudanças climáticas, essa é uma ótima opção.
Número três: é saudável para as pessoas. Seu médico te diz: “por favor, reduza o consumo de carne vermelha, coma mais frutos do mar”. Isso será bom para o diminuir o risco de câncer, doenças cardíacas e outros problemas de saúde. Portanto, por todas essas razões, e até mesmo por algumas outras – uma das quais, devo enfatizar, é que se você se preocupa com a perda de biodiversidade na terra, você deve querer que os oceanos sejam abundantes.
Podemos reverter o declínio da produtividade do oceano e obter mais peixes para o mundo. Por quê? Porque as partes mais produtivas do oceano são as zonas costeiras, que são gerenciadas apenas pelo país adjacente. Portanto, é possível salvar os oceanos e alimentar o mundo, país por país.
Uma pequena equipe de pessoas, como a Oceana (que existe agora em nove países e na União Europeia), pode vencer com políticas que forçam um melhor gerenciamento da pesca costeira, tornam-na mais produtiva, fazendo com que ela alimente mais pessoas e empregue mais pessoas. Essa é uma grande oportunidade. O mundo deve aproveitá-la.
Durante seus mais de 20 anos à frente da Oceana, o que mudou globalmente em termos de políticas de conservação dos oceanos e de conscientização pública?
Acho que provamos que é possível fazer avançar políticas em nível nacional, que colocarão mais peixes no mar para as pessoas comerem e que protegerão a biodiversidade do oceano. Provamos que nossas equipes têm sido eficazes em todos os lugares em que atuamos, já que conseguimos alcançar políticas em escala nacional que impedem a pesca excessiva, protegem o habitat, exigem transparência e reduzem a poluição.
Há 20 anos, não sabíamos se conseguiríamos vencer. As pessoas eram céticas quanto à possibilidade de o projeto inteiro funcionar. Parecia grande demais, o oceano parecia muito internacional, muito selvagem, muito descontrolado, muito facilmente explorado por grandes empresas industriais que não poderiam ser detidas. Por conta dos peixes, que, em sua maioria, são pescados nas zonas costeiras controladas por países individuais, mostramos que uma pequena equipe de defensores localizados em países-chave (escolhidos por terem uma grande captura de peixes ou uma grande frota) pode conquistar políticas que protegem e restauram um oceano abundante. Nós provamos isso, e essa é uma grande mudança.
A segunda coisa é que existe uma crescente conscientização sobre o esgotamento do oceano, tanto em termos de produtividade, quanto de biodiversidade. E acho que as pessoas, em geral, estão mais compreensivas do que há 20 anos, com o trabalho de restaurar e proteger os oceanos. As pessoas ouvem falar que os recifes estão morrendo por causa da mudança climática. Ouvem falar da poluição por plástico, especialmente nas praias, ou de desastres de perfuração de petróleo em alto-mar, como os que ocorreram de forma proeminente nos Estados Unidos com a Deepwater Horizon.
Essas são grandes mudanças, mas acho que ainda temos um longo caminho a percorrer.
O que a Oceana trouxe de diferente no combate à poluição marinha por plásticos?
Fizemos uma pesquisa nos Estados Unidos há cerca de um mês, na qual perguntamos às pessoas qual era o problema que mais afetava o oceano. E a poluição plástica foi apontada como esse problema.
Há cerca de dez anos, nossa diretoria pediu que descobríssemos uma maneira de sermos eficazes no combate à poluição plástica nos oceanos. No início, eu estava muito preocupado com o fato de o problema ser muito grande, muito difícil e a indústria ser tão poderosa – a indústria poluidora, os poluidores de plástico –, que não conseguiríamos, de fato, vencer.
E uma das crenças fundamentais que temos na Oceana é que devemos ser eficazes e definir metas que sejam importantes, mas onde, realisticamente, achamos que podemos vencer, e não apenas fazer coisas porque parecem boas. E, no início, eu estava bastante incerto de que poderíamos encontrar uma maneira de vencer.
Passamos cerca de dois anos com uma equipe global pensando nisso e o que percebemos, de forma muito importante nesse processo, foi que a indústria, a indústria de plásticos, teve sucesso em definir o problema como sendo um problema de falha dos indivíduos em reciclar seu plástico. E eles, de fato, culparam pela poluição a pessoa comum, que não tem escolha a não ser comprar coisas em garrafas e embalagens plásticas que são usadas uma vez e jogadas fora. O argumento da indústria era: “bem, nós só precisamos fazer com que a reciclagem funcione e o problema será resolvido.”
Mas nossa análise mostrou que isso era uma mentira e que, desde o início da produção de plástico, menos de 10% de todo o plástico já produzido foi reciclado. Menos de 10%! Qualquer pessoa que se preocupe com os fatos deve concluir que a única solução, portanto, é mover para cima e pedir para os poluidores principais, as grandes empresas, as grandes indústrias que estão escolhendo o plástico – um material que essencialmente dura para sempre – para se tornar uma embalagem que será usada uma vez e depois jogada fora, uma embalagem de bebida, uma embalagem de um produto que, na minha infância, não era de plástico; era vidro, era alumínio, era cerâmica, era tecido, era papel.
Há muitas alternativas além do plástico para embalagens e, na minha infância, todas elas foram empregadas com muito sucesso. Então, decidimos que vamos concentrar a atenção onde ela deve estar.
Alguém na Oceana criou uma ótima metáfora: se um dia você chega em casa e descobre, para sua grande infelicidade, que a pia está transbordando de água, qual é a primeira coisa que você faz? É ir buscar um pano para enxugar o chão? Não, a primeira coisa que você faz é fechar a torneira. Vamos fechar a torneira da poluição plástica, o que significa aprovar leis que exijam o fim das embalagens plásticas e que sejam substituídas por alternativas sensatas. E essas leis estão sendo conquistadas, em países do mundo todo.
Quais são os destaques, os desafios e o balanço que você faz desse período de 10 anos de atuação da Oceana no Brasil?
A equipe da Oceana no Brasil tem sido muito eficaz, em um ambiente desafiador. E tem sido realmente uma inspiração para nós, para nossas outras equipes ao redor do mundo, e certamente para mim e para nosso conselho de diretores e nossos financiadores.
Estou muito orgulhoso da conquista que fizemos aqui ao promover a transparência, ou seja, o rastreamento da pesca, dos barcos de pesca comerciais, em domínio público, a partir de informações obtidas por meio de satélite sobre onde estão pescando. Também com o fim da pesca de arrasto de fundo no Rio Grande do Sul, protegendo uma enorme quantidade de habitat muito produtivo, em benefício de pescadores não industriais, de menor escala, e de seus meios de subsistência e seus empregos. Tudo isso foi alcançado apenas nesses dez anos, assim como alguns grandes avanços em relação à poluição por plástico, especialmente trabalhando com algumas grandes empresas brasileiras, fazendo com que concordassem em retirar as embalagens plásticas de suas operações regulares.
Em todas essas quatro áreas de políticas, proteção de habitat, gerenciamento de pesca, poluição e transparência, temos visto grandes avanços aqui no Brasil.
Como líder global, qual é a sua visão para o futuro da Oceana e como a sociedade pode contribuir para salvar os oceanos?
Primeiro, as pessoas precisam entender que podemos conquistar um enorme progresso para os oceanos, país por país. E isso é muito inspirador para as pessoas que entendem como é difícil fazer com que todas as nações do mundo trabalhem juntas – a história mostra que é muito, muito difícil.
Então, entender que podemos fazer país por país e perguntar a si mesmo se o seu envolvimento com o seu país pode ajudar a impulsionar políticas nacionais. Falamos sobre cinco coisas aqui: acabar com a pesca excessiva; proteger os habitats; reduzir a poluição, especialmente a poluição por plástico e óleo; exigir transparência, ou seja, rastreabilidade e transparência da pesca comercial; e, por fim, tomar medidas para proteger a biodiversidade, medidas específicas para proteger a biodiversidade quando ela estiver ameaçada. Essas são as cinco áreas em que precisamos de políticas.
Você deve perguntar a si mesmo se pode ajudar seu país a tomar essas medidas em seu próprio interesse. Isso não é como a mudança climática, em que estamos pedindo às pessoas que façam algo que é difícil para sua própria economia, difícil para seu próprio país, a serviço do planeta. Se fizerem a coisa certa, vocês terão mais peixes em seu próprio oceano, um oceano mais abundante e limpo para seu próprio povo, seus próprios pescadores. Os pescadores de menor escala poderão ter meios de vida mais estáveis e melhores empregos. Portanto, é bom fazer isso, tanto pelas razões comuns e conhecidas sobre empregos e alimentos, como também pelo bem maior do clima e do planeta.
Confira também a entrevista em vídeo: