A credibilidade do Brasil em sua ambição de protagonizar agendas ambientais globais é arranhada quando falhamos ao implementar uma política básica para resíduos sólidos que endereçaria boa parte das soluções também para o problema do lixo plástico em nosso território
Por Ademilson Zamboni*
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), estabelecida pela Lei nº 12.305, em 2010, para ser o marco na gestão de resíduos no Brasil, prometeu, mas não entregou. Com uma hierarquia clara de prioridades que inclui a não geração, a redução, a reutilização, a reciclagem, o tratamento e a disposição final adequada de resíduos, a PNRS foi celebrada como uma resposta para um dos maiores desafios ambientais do país. No entanto, 14 anos depois, o cenário que se apresenta é frustrante, reforçando a descrença nos compromissos do governo federal com resultados concretos.
A logística reversa, um dos pilares da PNRS, deveria assegurar que fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes – e não só o consumidor – deveriam assumir a responsabilidade pelo ciclo de vida completo de seus produtos, incluindo as embalagens plásticas. Na prática, porém, essa obrigação ficou delegada aos serviços públicos de coleta seletiva, que, na maioria das vezes, são insuficientes ou inexistem.
O Acordo Setorial de Embalagens em Geral, firmado em 2015, também foi vendido como boa parte da solução. Porém, após dois anos de sua implementação, o aumento na taxa de recuperação de materiais foi de pífios 2,4%. A segunda fase do acordo, que deveria expandir essas ações a partir de 2018, nunca foi implementada, e parece que todos estão incrivelmente confortáveis com isso. As práticas de gestão de resíduos sólidos no Brasil têm sido insuficientes para aumentar as taxas de reciclagem, já que os investimentos e subsídios não estão na mesma escala que investimentos na produção de novos produtos e embalagens de plásticos. A conta não fecha.
Em 2022, o então Ministério do Meio Ambiente abriu uma consulta pública para um novo decreto que instituiria o sistema de logística reversa de embalagens em geral. Quase dois anos depois, e após audiências e consultas, o decreto segue sem ser publicado. Enquanto isso, o país é inundado e poluído por embalagens plásticas não recicláveis. Os números são alarmantes: de acordo com o relatório da Oceana Fragmentos da Destruição: impactos do plástico à biodiversidade marinha brasileira, 1,3 milhão de toneladas desses resíduos chegam ao oceano anualmente, impactando todas as espécies marinhas, contaminando os peixes que consumimos e gerando microplásticos que chegam ao nosso corpo e colocam em risco a nossa saúde.
As embalagens, que representam cerca de 38% da produção de plásticos transformados no Brasil – aproximadamente 2,5 milhões de toneladas por ano – são continuamente colocadas no mercado por empresas que, muitas vezes, fazem relatórios ESG “primorosos” e, ao mesmo tempo, se isentam da responsabilidade pelos impactos causados, deixando de cumprir sua obrigação legal de realizar a logística reversa. Esse trabalho acaba sendo feito por catadores e catadoras de materiais recicláveis, que são sub-remunerados pelo serviço ambiental que prestam à sociedade. Ou seja, ao externalizarem essa responsabilidade, as empresas se beneficiam financeiramente, enquanto os governos municipais arcam com despesas elevadas de gerenciamento do lixo pelo não cumprimento das obrigações de outrem. No fim, quem paga é o contribuinte e, como nunca, vale a máxima já surrada de que o ônus é coletivo, mas o bônus é para poucos, e que raramente há quem seja responsabilizado.
Enquanto decretos de logística reversa avançam em alguns estados, como São Paulo e Espírito Santo, o governo federal está apático. O Executivo precisa retomar as rédeas do processo, definir metas ambiciosas para responsabilizar as empresas pelo passivo ambiental que geram, além de incluir metas de reuso e conteúdo reciclado nas embalagens, para avançar com a economia circular. A demora na publicação do decreto de logística reversa do plástico não só reflete uma falta de prioridade, mas também uma conivência com a poluição ambiental causada pelos resíduos sólidos. Isso é grave.
Em suma, após 14 anos de promessas não cumpridas, a PNRS tornou-se um exemplo de política pública arduamente conquistada, mas ineficaz. Uma lei que “não pegou”. No início de agosto de 2024, terminou o prazo – já estendido várias vezes – para o país erradicar os lixões, mas ainda existem três mil depósitos irregulares com lixo a céu aberto. Além disso, as taxas de reciclagem continuam estagnadas. A quem interessa isso?
A credibilidade do Brasil em sua ambição de protagonizar agendas ambientais globais é arranhada quando falhamos ao implementar uma política básica para resíduos sólidos que endereçaria boa parte das soluções também para o problema do lixo plástico em nosso território. Não dá para ficar apenas no discurso. Hoje, o governo tem em suas mãos uma escolha decisiva: ou realiza o enfrentamento necessário para resolver o problema ou será conivente com um crime ambiental.
*Ademilson Zamboni é oceanólogo e diretor-geral da Oceana. O artigo foi publicado originalmente no portal O Eco.
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