"A luta por políticas públicas sempre tem mulheres que se dão as mãos" - Oceana Brasil
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Março 21, 2025

“A luta por políticas públicas sempre tem mulheres que se dão as mãos”

Viviane Machado Alves defende nova política pesqueira que inclua as mulheres pescadoras. Foto: Oceana/Andressa Anholete

 

Viviane Machado Alves nasceu em uma comunidade tradicional de pesca no Estuário da Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. A família por parte de mãe era toda ligada à atividade, mas seus pais seguiram por outros caminhos. Ela, no entanto, se casou com um pescador e foi aí que começou sua trajetória como pescadora artesanal. Hoje, 24 anos depois, ela é uma importante liderança da região, na defesa dos direitos das pescadoras e dos pescadores e na luta pelo território.

Uma das vencedoras do Prêmio Mulheres das Águas 2024, promovido pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) a ser entregue em 25 de março, ela é também nossa convidada para essa edição da Oceana Entrevista, que marca o Dia Internacional da Mulher, celebrado no último dia 8.

 

Como é sua rotina na Lagoa dos Patos?

Nós colocamos a rede de camarão, que chamamos de aviãozinho, lá pelas 6 horas da tarde, quando está começando a anoitecer. Lá pelas 10h30, 11h da noite, revistamos essa rede, uma por uma, para despescar o camarão [processo de retirada dos camarões das redes]. Perto de meia noite colocamos a rede de novo – e nisso seguimos acampados na embarcação – inclusive, jantamos e dormimos por lá. Depois só vamos revistar essa rede às 4h30 da manhã de novo, quando a gente levanta, despesca e vem embora para casa; já lá pelas 7, 8 horas da manhã. Durante o intervalo do dia é que eu processo o camarão, carrego as baterias e remendo a rede para voltar pro mar lá pelas 6 horas da tarde de novo.

Nessa revista das redes é que a gente vai escolhendo o camarão – uma parte vendemos para atravessador e outra a gente tira para descascar, para agregar valor no produto pescado e ter uma fonte de renda que não dependa deles. Com [a rede] aviãozinho, nós pescamos o camarão; e com a rede de malha, nós pescamos linguado, tainha, peixe-rei e corvina. Nesses casos, quando é para peixe, a gente coloca a rede ali pelas 4h30 da tarde e volta só no outro dia, 5h30 da manhã, para recolher.

É puxado, mas vale a pena! A gente não tem patrão e faz o nosso próprio horário. É muito bom ser pescadora.

Você também exerce um trabalho político como liderança. Como começou essa atuação?

Eu comecei a participar da militância em 2002, quando vim morar aqui na comunidade tradicional da Ilha dos Marinheiros e via que as mulheres não tinham voz. Eu chegava na casa delas, para falar com elas, e elas chamavam o marido, porque o marido não deixava elas falarem. E também quando a gente chegava em uma colônia de pesca ou nos órgãos responsáveis por nós, pescadoras e pescadores. Diziam: “Ah, o teu marido está junto? Porque ele tem que assinar!” Não atendiam a nós, mulheres, porque tínhamos que estar com os esposos. E aquilo começou a me incomodar, eu queria entender o porquê de a gente depender do homem para ter tudo. Foi quando eu comecei a fazer parte da militância e trabalhar para conseguir trocar essa situação.

Quais suas expectativas em relação à Lei da Pesca, já que você participou da construção coletiva do texto do Projeto de Lei 4789/2024, que está agora no Senado Federal?

É uma grande alegria ter participado disso. A nossa maior expectativa, principalmente das mulheres pescadoras, é estarmos dentro dessa lei. Na legislação atual [Lei 11.959/2009], nós somos consideradas como “apoio de pesca”. E, na verdade, nós nunca fomos apoio de pesca. A gente sempre trabalhou até mais que os homens, porque além do pescar em si, a gente processa, comercializa e agrega valor no produto. Então, esperamos que o governo nos enxergue como trabalhadoras da pesca artesanal.

Esse Projeto de Lei [4789/2024] foi construído por várias mãos de pescadoras e pescadores que vivem dentro da base e sabem, realmente, onde o calo aperta. Assim como foi com a Lei das 12 Milhas, aqui no Rio Grande do Sul, que teve a nossa participação, de quem entende o assunto e vivencia 24 horas por dia a pesca artesanal.

Então, para mim, o mais gratificante é isso: pela primeira vez a gente foi ouvido, [o texto do Projeto de Lei] foi feito por aqueles que vivenciam esse dia a dia. E agora nossa expectativa é que seja aprovado o mais rápido possível, pra gente também sair da invisibilidade e passarmos a ser reconhecidas pelas profissionais que somos.

Tem uma frase sua, citada na cartilha Mulheres das Águas e das Marés, que é: “Eu nunca vou sair de um espaço que eu acho que devo ocupar”. Você avalia que a presença de mulheres nos espaços de discussão política já gera resultados para as novas gerações?

Ah, com certeza! Nossa classe é extremamente machista, mas já se conseguiu mudar muito isso, porque são muitos anos nessa luta. E hoje, além das mulheres serem mais empoderadas, as mulheres mais jovens da comunidade se agarram bastante na luta do empoderamento. Eu acho até que é porque elas se criam nesse ambiente machista, mas quando elas veem a gente, nos tornamos um exemplo.

Aqui na comunidade mesmo, a maioria das mulheres não dirige. Elas dependem do marido para tudo. Mas com as filhas, com as mais jovens já não é assim, mudou muito. E a gente empodera elas, reforça que elas têm que estudar, têm que ir para a universidade para mudar essa dinâmica. Não mudar o modo de vida enquanto comunidade tradicional, mas esse modo de vida que era o da mãe, da vó, de como a comunidade se porta. A gente não pode viver como era antigamente. Nós temos direitos e esses direitos, muitas vezes, não chegam. Então, quando elas vão para dentro de uma universidade, por exemplo, e se empoderam, elas já têm mais voz ativa. E isso gera muita diferença até entre os homens mais jovens também, que a gente vê que eles mudaram muito na questão do preconceito, no tratamento com as mulheres. Eles também já deram alguns passos a mais, e isso faz muita diferença.

Você é uma das vencedoras do Prêmio Mulheres das Águas deste ano, na categoria Pesca e Aquicultura em Águas Estuarinas, e foi indicada à premiação pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). O que esta conquista representa para você?

Eu fui indicada pelo Laboratório (R)EAT [Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão (R)Existências Ambientais e Territoriais], da FURG, e fiquei muito feliz! Feliz por todo o reconhecimento que os meninos e as meninas desse laboratório têm com a gente, com os pescadores artesanais. E feliz com esse reconhecimento do Ministério, porque eu acho que nós, pescadoras do Estuário, a partir desse prêmio, também vamos ter mais visibilidade.

Eu receberei o prêmio, vou subir lá naquele palco, mas vou representar a nós todas. Porque se hoje eu sou essa liderança que sou para a pesca artesanal, ela foi construída a várias mãos, por várias mulheres, da minha comunidade da Ilha dos Marinheiros, de todo o Rio Grande do Sul e de todo o Brasil. Tudo aquilo que os meninos [da FURG] escreveram sobre a trajetória da pesca artesanal aqui dentro do Estuário da Lagoa dos Patos e do estado, que eu represento e sou coordenadora do movimento, é uma conquista de várias e várias mulheres.

A gente vem enfrentando essas crises climáticas já há dois anos – em 2023 e agora em 2024 – e não podemos nem dimensionar o que as enchentes causaram para as pescadoras de toda a Lagoa dos Patos. Mas a gente viu o quanto a união de nós mulheres fez a diferença dentro das comunidades. Além dos pescadores que salvaram várias vidas da capital [Porto Alegre] para cá, a gente sabe de todo o trabalho que se teve, das pescadoras e dos pescadores.

Então, ir lá receber esse prêmio é representar a todas, porque a luta nunca é só. A nossa luta por reconhecimento e por políticas públicas sempre tem várias mulheres que se dão as mãos. Hoje se a gente for ver quem está à frente da luta, somos nós mulheres.

Além disso, tem o reconhecimento do laboratório. Porque a gente sabe que alguns espaços dentro da universidade são a nosso favor, mas também tem muitos processos, muitas proibições que acontecem por causa da universidade e que geram problemas à pesca artesanal. Nem todos estão a nosso favor. E isso a gente não pode admitir: que pessoas que não vivenciam o nosso cotidiano e que não moram nas nossas comunidades tradicionais, falem por nós. Então, o momento em que o laboratório nos reconhece, respeita o modo como somos e vivemos, nos deixa muito feliz, porque eles estão comprometidos com a causa da pesca artesanal e com as pescadoras do Estuário da Lagoa dos Patos.

Quais são as principais lutas de uma mulher pescadora no Brasil hoje? No que ainda precisamos avançar?

Nossas principais lutas são por reconhecimento. Por reconhecimento de que somos trabalhadoras da pesca artesanal, que não somos apoio de pesca. Quando a gente adentra esses espaços de uma nova política pública de pesca, com o nosso nome inserido, é o que vale a luta!

Também não podemos ficar só na mão dos atravessadores. A gente não pode só vender nosso pescado in natura, temos que agregar valor ao nosso produto e não ficar tão dependentes de políticas públicas do governo. Porque quando a gente conseguir avançar no processamento e na comercialização, a gente avança – e avança muito!

O camarão que está dando aqui no Estuário da Lagoa dos Patos poderia ser processado e comercializado diretamente por nós. Vendemos o camarão por R$ 5 ou R$ 7, mas poderíamos descascar e vender ele por R$ 40, agregando valor ao produto, por conta de sua qualidade. É um produto muito limpo, pois temos um cuidado extremo, já que o que vendemos também é o que vamos comer, é um produto de muita qualidade. Mas o governo não enxerga isso. Só a indústria pode processar, enquanto nós temos que entregar para atravessadores por um valor irrisório. Isso é vergonhoso, a gente entregar um produto por esse valor porque o governo não nos permite fazer esse processamento do pescado.

Outra das nossas principais lutas é pelo território. A gente depende tanto do território terrestre quanto do aquático. Então, quando a gente defende o nosso território, estamos defendendo nosso modo de vida, o lugar onde a gente cria os nossos filhos. Essa é uma das principais lutas das mulheres, porque a gente não quer sair do nosso território ou ser expulsas do nosso território. Vemos que a jogada do governo, em todas as esferas, é tirar nossos territórios e entregar para os grandes empreendimentos. Mas isso a gente não pode aceitar. Como vamos viver do território aquático se nos colocarem no meio de um centro urbano? Como vamos cuidar das nossas embarcações? Como a gente vai manter nosso modo de vida?

O território hoje é uma luta tanto dos movimentos sociais quanto de nós, mulheres, que não queremos sair do lugar onde nascemos ou escolhemos viver.