Março 29, 2023
“Quando encontrei os detritos plásticos com aparência de rocha, fiquei chocada”
Por: Beatriz Ribeiro
O TEMA: Plásticos
Doutoranda em Geologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), a pesquisadora Fernanda Avelar Santos estava em rotina de coleta na remota Ilha da Trindade, localizada a mais de mil quilômetros de Vitória, no Espírito Santo, quando se deparou com o improvável: rochas que tinham em sua superfície aparentes afloramentos de plásticos. Após coletar amostras, ela levou para laboratório e, junto com uma equipe de cientistas, confirmou, pela primeira vez, a existência de rochas híbridas formadas, pela interferência humana, por meio da poluição de plástico. A revelação culminou em um artigo internacional na conceituada revista Marine Pollution Bulletin e chocou a opinião pública brasileira, sobretudo, porque o local é considerado um santuário de diversas espécies marinhas, como as tartarugas-verde, e fica distante dos poluídos centros urbanos. “A Ilha da Trindade apresenta uma ocupação não convencional de poucas pessoas, restrita a militares e pesquisadores. Por isso, observar lixo chegando pelo mar, torna o cenário mais chocantes ainda”, lamenta Fernanda, que também é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Uma das questões que chama atenção nessa problemática das “rochas de plásticos” é a subversão ao paradigma do tempo geológico. O que a intervenção humana por meio da poluição de plástico nos oceanos põe em risco?
É importante entendermos o conceito do “tempo geológico”, que é uma das mais importantes contribuições da geologia para a cultura humana e foi fundamental para alicerçar várias teorias fundamentais da ciência moderna, como a Teoria da Evolução, de Darwin. O tempo geológico representa o reconhecimento de uma escala cronológica de milhões e bilhões de anos, crucial no entendimento da história da Terra como a conhecemos hoje. Ao longo do tempo geológico, os principais agentes transformadores dos registros da Terra eram naturais, por exemplo, processos tectônicos e mudanças climáticas. No entanto, a ação humana está tão pervasiva que modifica a Terra de forma mais acelerada do que os processos naturais. Nesse sentido, a intervenção humana coloca em risco o ciclo natural dos processos que acontecem no meio ambiente. Um exemplo é o nosso estudo, que mostra que o comportamento humano atual ligado à poluição marinha provoca uma mudança de paradigma nos conceitos de rocha e formações de depósitos sedimentares.
Antes de encontrar as rochas com afloramentos de plásticos, como era percebida a poluição por esses resíduos numa região tão remota?
As praias da Ilha da Trindade chamam atenção pela variedade e quantidade de detritos plásticos que chegam pelas correntes oceânicas. Tal problemática já foi alvo de outros estudos e monitoramentos. A Ilha apresenta uma ocupação não convencional de poucas pessoas, restrita a militares e pesquisadores. Por isso, observar lixo chegando pelo mar torna o cenário mais chocante ainda. Durante as minhas atividades de mapeamento geológico do doutorado, a questão do lixo naquelas praias sempre me chamou atenção. Quando encontrei os detritos plásticos com aparência de rocha, de maneira totalmente inesperada, fiquei realmente chocada e curiosa para entender o significado e as consequências dessas ocorrências inéditas no Brasil.
O que mais lhe impressionou com essa descoberta?
Em um primeiro momento, o local onde foram encontradas. Trata-se da região da Praia das Tartarugas, que representa uma área de Monumento Natural (Mona) do Brasil, abrigando uma biodiversidade frágil e única. Em segundo, a aparência das ocorrências, que tem consistência de rochas naturais, mas são cimentadas por plástico derretido. Isso foi surpreendente!
Você poderia detalhar um pouco sobre a composição peculiar das rochas de plástico da Ilha da Trindade e as diferenças delas com as rochas de outros países?
O nosso estudo é o primeiro relato no Brasil da ocorrência de rochas compostas por plástico idênticas às rochas naturais e, também, é o primeiro estudo no mundo que encontrou um afloramento na superfície da praia com vários tipos desses detritos que, até então, foram relatados individualmente em outras ilhas e costas do mundo. Além disso, o nosso estudo relatou esse tipo de ocorrência no local mais remoto até o momento.
Como essas rochas se formaram e que tipos de resina aparecem na sua composição? Essas resinas têm relação com os plásticos de uso único?
A nossa pesquisa revelou que o processo de formação dessas rochas originadas pela poluição marinha é rápido e depende de três etapas, nas quais o ser humano atua como principal agente geológico. Elas são: 1) disponibilidade de lixo plástico no ambiente marinho ou costeiro; 2) arranjo e deposição do lixo em um local da praia (quando as pessoas juntam o lixo a fim de descartar ou fazer fogueira); e 3) aumento da temperatura do ambiente por meio de fogo (como as fogueiras), que derrete o plástico que interage com os sedimentos da praia, formando cimento plástico e, consequentemente, essas rochas. A partir de análises de laboratório, observamos que se tratava de detritos, formados pela fusão de material plástico e sedimentos naturais, como areia, cascalhos, rochas vulcânicas e materiais biogênicos, com aparência, consistência e solidez semelhantes às rochas naturais. Observamos que essas rochas híbridas eram cimentadas por plástico derretido, e as análises químicas mostraram que são constituídas por dois polímeros principais: polipropileno e polietileno.
Quais os impactos dessas rochas no ecossistema?
O local da nossa descoberta é próximo à maior região de ninhos da tartaruga-verde do Brasil. Além disso, é habitat natural de aves marinhas, caranguejos e abriga um ecossistema frágil e único, que inclui espécies endêmicas de peixes e diferentes conjuntos recifais. Nesse sentido, as rochas de plástico têm implicações significativas para a biodiversidade, pois representam uma fonte de microplástico que pode integrar a cadeia alimentar da região.
Podemos esperar que esse fenômeno se torne comum?
Sim. Agora que emergiram os primeiros estudos, como o nosso, a tendência é de que as pessoas comecem a reconhecer esse novo tipo de poluição plástica. O risco associado é que esses detritos, além de serem fontes de microplástico para o meio ambiente, também podem conter (e transportar) poluentes perigosos.
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