“Hoje, temos um mapa com informações essenciais para a gestão da pesca demersal no Sul e Sudeste do Brasil” - Oceana Brasil
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Abril 28, 2023

“Hoje, temos um mapa com informações essenciais para a gestão da pesca demersal no Sul e Sudeste do Brasil”

O TEMA: 

Foto: Dales Hoeckesfeld

 

Em parceria com a Oceana, o professor Dr. José Angel Alvarez Perez, da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), comandou o importante projeto “Subsídios Científicos para o Manejo Espacial e com Enfoque Ecossistêmico da Pesca Demersal nas regiões Sul e Sudeste do Brasil”. O resultado aponta um novo modelo para a gestão das pescarias de fundo (chamadas de demersais), que deixa de lado abordagens antigas que focavam exclusivamente no controle das espécies-alvo para adotar a espacialização de territórios e o manejo ecossistêmico, isto é, que leva em consideração tanto a proteção do meio-ambiente e as espécies, quanto as atividades econômicas e sociais do ser humano. O resultado foi apresentado ao governo federal e pode se tornar um importante vetor para desenvolver uma gestão de pesca demersal mais sofisticada, aproximando o Brasil de países com avançadas políticas pesqueiras.

No mês de março, houve a última apresentação de um conjunto de projetos de pesquisa financiados pelo CNPq sobre a pesca no Brasil. Qual a sua avaliação sobre o esforço do governo e a importância desses estudos no contexto atual?

A avaliação é muito positiva. Não apenas pelos recursos investidos, mas também por dois elementos que considero essenciais para que esses recursos ajudem nas ações de gestão do governo:

(a) Os recursos foram disponibilizados por meio de editais públicos específicos para a gestão pesqueira – ou seja uma pesquisa pesqueira “induzida” pelo governo federal;

(b) Os recursos foram movimentados a partir de parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Isso foi um grande passo, pois o CNPq tem procedimentos administrativos simplificados, e os cientistas conhecem muito bem. No passado, participei de iniciativas parecidas que eram operadas a partir de convênios com ministérios, com processo muito difícil de executar.

O projeto que o senhor coordenou – e que contou com a participação da Oceana – estudou a pesca demersal no Sudeste e Sul. O que de fato esse projeto se propôs a fazer?

O projeto se propôs a remodelar a gestão da pesca demersal, saindo do paradigma de gestão por espécie e se aproximando de uma gestão “espacial” da pesca. Em regiões subtropicais, como o Sudeste/Sul do Brasil, é comum se ter uma pesca demersal operando sobre grande diversidade de espécies (em Santa Catarina, são reportadas anualmente mais de 50 categorias de pescado). Ainda que existam alguns alvos da pesca, e que também são normalmente da gestão, é notável a grande quantidade de espécies capturadas. Muitas são comercializadas regularmente por décadas, mas que nem foram estudadas nem são alvos da gestão pesqueira. Com frequência, essas espécies “negligenciadas”, estão seriamente sobrepescadas. Ou seja, o modelo de gestão pesqueira voltada a espécies-alvo tem grande potencial para promover o uso não sustentável de espécies não-alvo, trazendo prejuízos também para comunidades e ecossistemas.

Quais os resultados (ou legados para a ciência e para a gestão) do projeto?

Parece claro que a gestão pesqueira, onde se tem múltiplas espécies vulneráveis e múltiplas frotas pesqueiras, não pode ser baseada em espécies-alvo. Uma alternativa é a gestão por território, ou seja, dentro de recortes espaciais definidos, onde a gestão tem como foco o conjunto total de espécies e de pescarias. Essa alternativa tem sido explorada em outros países porque é compatível com iniciativas de Planejamento Espacial Marinho.

Nosso projeto partiu do princípio de que se poderia explorar essa alternativa a partir da informação já existente nas regiões Sudeste/Sul. Compilamos mais de 1.000 publicações com informações básicas sobre as espécies, construímos uma base de dados espacializados de captura e esforço (intensidade de pesca – grifo da Oceana) – compartilhada entre as principais instituições de pesquisa pesqueira da região – , adicionamos outras bases públicas com informação sobre o ambiente natural, e aplicamos diferentes ferramentas quantitativas para obter:

(a) Recortes espaciais que caracterizem “regiões pesqueiras” homogêneas (já utilizadas pelas frotas de pesca há décadas) as quais chamamos Unidades Geográficas de Gestão (UGGs)

(b) Descritivos completos da atividade pesqueira demersal no interior de cada UGG (espécies, métodos de pesca, volumes capturados, receitas totais, potenciais de captura, estado de exploração dos estoques, impactos ambientais etc.)

(c) Vocações de cada UGG para a exploração por pesca demersal (Quanto se pode pescar? Quais espécies? De que forma?)

Essa síntese, sumarizada numa base espacial única, permitiu-se a formulação de um modelo de gestão pesqueira, com foco nas UGGs, que explora potencialidades de uso e busca minimizar a degradação do ecossistema marinho. É um “mapa” com informações essenciais para a gestão da pesca demersal.

A construção desse mapa, gerou inúmeros produtos secundários (métodos, análises e bases de dados), que são legados do projeto para estudos subsequentes. Porém, o resultado apresentado para o governo e sociedade foi a proposta de modelo espacial de gestão da pesca demersal para o Sudeste/Sul do Brasil.

Quais os desafios (e a importância) do projeto em promover uma integração das informações dentro de um país que tem uma base de dados fragmentada?  O senhor enxerga algum caminho para que no futuro tenhamos um sistema integrado de informações sobre a pesca?

Acho importante considerar inicialmente que, ainda que com diferenças regionais, existe um considerável volume de informações sobre os recursos pesqueiros e pescarias publicadas que precisam ser compiladas. Nós, cientistas, temos o costume de avaliar que se sabe pouco sobre esse ou aquele tema, mas nem sempre isso é verdade. Sim, existem grandes lacunas, mas ainda assim é preciso sintetizar formalmente o conhecimento existente para que se delimitem claramente essas lacunas. Esse é o primeiro passo.

Além disso, existem as bases de dados pesqueiros que têm sido geradas regionalmente de forma fragmentada, independentemente de uma ação coordenada do governo federal, e, muitas vezes, motivadas por demandas diversas que vão desde projetos pessoais de pesquisadores até os condicionantes para a exploração de petróleo e gás na costa brasileira. Integrar essas bases de fato é um desafio, mas que deve ser superado por meio do diálogo e negociação.

Pode exemplificar como é possível fazer essa negociação para reunir tantas informações?

Nosso projeto é um exemplo disso. Desenvolvemos um “acordo legal de compartilhamento” assinado por todos os partícipes, no qual são definidos os termos de uso de dados institucionais compartilhados. Isso trouxe conforto institucional e segurança para os pesquisadores. É um legado do projeto que foi construído com base na necessidade de unir esforços em torno de um bem comum, que é a gestão dos recursos pesqueiros. Como se faz isso em nível nacional? Difícil responder, mas seria imprescindível inicialmente se ter um “programa sólido de gestão pesqueira”, algo que os eventuais “doadores” de dados possam se sentir recompensados e seguros.

O projeto que o senhor coordenou fala bastante sobre “manejo ecossistêmico”, que é uma evolução da gestão pesqueira tradicional. Como funciona essa nova forma de administrar a pesca e quais os desafios que o Brasil deve enfrentar por ser um país onde, mesmo o básico (como estatística pesqueira), não é feito em boa parte da costa?

Primeiramente, é preciso se ter uma clara interpretação sobre o termo “manejo ecossistêmico”. A evolução da gestão pesqueira tradicional, que ocorreu nas últimas décadas, vai no sentido de se elevar o nível de importância, no processo de gestão, da conservação de um ambiente natural “saudável”, que potencializará a produtividade dos estoques pesqueiros. Por exemplo, executar um processo de gestão pesqueira que não permita que o lago, o rio, o ambiente costeiro ou oceânico seja degradado, pois se for não haverá recurso.

Como se faz isso?

Há pelo menos três interpretações sobre como considerações ecossistêmicas são vinculadas à gestão da pesca. Na primeira, há o manejo tradicional, com planos de manejo voltados à espécies-alvo, mas que contém medidas adicionais que procuram proteger comunidades marinhas e o ecossistema como um todo (por exemplo: restrições de fauna acompanhante, métodos mais seletivos, etc.). Esse é o “Manejo Pesqueiro com Abordagem Ecossistêmica”.

A segunda interpretação já não considera espécies como alvo da gestão. Agora espécies são manejadas conjuntamente assim como os ecossistemas que as sustentam. Essa é a base do “Manejo Pesqueiro Baseado no Ecossistema”.

Por fim, há o verdadeiro “Manejo Ecossistêmico” cujo objeto de gestão é o ecossistema, e a pesca é uma das atividades antropogênicas entre outras igualmente integradas. Nessa interpretação, a dimensão humana (social e econômica) é também integrada ao ecossistema.

As três interpretações são legítimas e ajudam na construção de uma gestão mais equilibrada. Mas variam em grau de complexidade, seja de análises científicas, seja do alcance dos sistemas de gestão. Então, claro, sua aplicação depende da realidade da gestão pesqueira local.

O importante é que ações voltadas a proteção dos ambientes naturais sejam incorporadas a gestão pesqueira de alguma forma possível. Mesmo em uma gestão pesqueira considerada precária, pode-se ter medidas fortes que protejam tanto os recursos como os ecossistemas que sustentam esses recursos.

Os resultados dos cinco projetos que foram concluídos neste ano trazem contribuições para a ciência e para a gestão. O senhor enxerga algum risco de todo esse conhecimento terminar “engavetado”?

O risco existe. Mas não por falta de vontade política ou desvalorização da ciência. Mas simplesmente por que se deve entender que a ciência pesqueira deve ser guiada pela gestão pesqueira, e não o contrário, como se costuma pensar.

Quando a gestão de um recurso é definida por um plano de manejo que inclui medidas fundamentadas em certos conhecimentos sobre o recurso, a ciência é induzida a suprir a gestão com esses conhecimentos. Nem mais nem menos.

Em contraponto, quando a gestão pesqueira é baseada em medidas erráticas aplicadas a recursos e pescarias, sem planos de manejo com medidas bem definidas, o conhecimento científico “necessário” ´não está definido. Cientistas, não induzidos pela gestão, geram conhecimentos diversos, e tornam isso público.

Se a gestão pesqueira de um país não sabe que tipo de conhecimento vai precisar, talvez não saiba como lidar com o conhecimento disponível, ainda que esse seja abundante. Repito: não é a ciência que move a gestão pesqueira; é a gestão pesqueira que move a ciência.

Quais os caminhos e as principais ações do governo devem ser tomadas para aproveitar ao máximo essa ‘onda de conhecimento’?

É basicamente um só caminho, que passa por alguns marcos obrigatórios:

  1. Definir modelos gerais de gestão e construir Planos de Manejo (para espécies, ou melhor, para UGGs).
  2. Formar Comitês Gestores que se responsabilizam pela execução dos Planos de Manejo.
  3. Formar Comitês Científicos que assessorem esses Comitês Gestores – ou seja, recebam as demandas dos Planos de Manejo e executem ações científicas que possam trazer as informações demandadas.
  4. Manter fluxo de recursos para esses Comitês Científicos, dimensionados às demandas definidas pelos Planos de Manejo e de preferência usando o CNPq como plataforma de execução dos mesmos.

Não é nenhuma novidade, é a forma, por exemplo, como funciona a maioria das organizações de pesca internacionais.