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Fevereiro 18, 2025

“O Brasil não precisa esperar pelo Tratado Global para reduzir o plástico”

Por: Oceana

O TEMA: Plásticos

Ítalo Braga, professor e pesquisador. Foto: Acervo pessoal

 

Biólogo e doutor em Oceanografia, Ítalo Braga é professor e pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar-Unifesp) e um dos autores do relatório Fragmentos da Destruição: impactos do plástico na biodiversidade marinha brasileira, publicado pela Oceana em outubro de 2024. Em sua trajetória de pesquisa sobre os impactos ambientais da contaminação marinha, ele se deparou com um problema de proporções globais: a poluição por plástico, que afeta não só a saúde dos oceanos como também a dos seres humanos de todos os cantos do planeta. Nessa edição da Oceana Entrevista, ele fala sobre as origens e as consequências desse tsunami de plástico e aponta caminhos viáveis para nadarmos contra a maré, e enfrentarmos essa que é a segunda maior ameaça ambiental ao planeta, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

 

Como a ciência avalia hoje o problema da poluição por plásticos e seus impactos?

A ONU decretou, alguns anos atrás, que nós estamos vivendo uma tripla crise planetária, resultado das mudanças climáticas e da poluição, que levam à perda da biodiversidade. A comunidade científica internacional vê isso com muita preocupação, porque essa biodiversidade é provedora de serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos. Para simplificar: o ar que respiramos, a comida que comemos e a água que bebemos dependem dela. Então, na medida em que as atividades humanas geram estresse sobre essa biodiversidade, levando à sua perda com a extinção de espécies mundialmente ou mesmo localmente, a gente passa a ficar carente dos seus serviços ecossistêmicos e isso pode produzir uma série de consequências para a própria humanidade.

O que seus estudos revelam sobre a relação entre a fauna marinha e a poluição por plásticos? Por que essas análises funcionam como um termômetro da poluição por plástico nas áreas estudadas?

Nesse momento, a comunidade científica nacional, e também a mundial, precisa entender melhor como os microplásticos afetam o ambiente. A primeira estratégia para isso é realizar estudos de monitoramento – que consistem, basicamente, em entender quais são as áreas contaminadas, que áreas estão mais contaminadas que outras e qual é o tipo de plástico que contamina. Para realizar esse tipo de atividade é possível ir ao ambiente e coletar amostras do ar, da água, dos sedimentos ou mesmo de animais para analisar.

Ao longo dos últimos anos, alguns organismos marinhos que se alimentam filtrando a água do mar, como é o caso de moluscos bivalves, tais como ostras e mexilhões, e esponjas marinhas, se revelaram interessantes organismos para atuarem como sentinelas na contaminação. Isso porque esses animais se alimentam forçando a entrada de água por dentro dos seus corpos e retirando dessa água pequenas partículas nutritivas. Mas, na medida em que essa água está contaminada, seja por microplástico ou por quaisquer outras substâncias químicas, esses organismos vão acabar acumulando tais materiais no seu próprio corpo. Ao analisar seus tecidos e órgãos, nós encontramos a acumulação desse material. Portanto, eles são excelentes sentinelas na contaminação, indicando que áreas estão mais contaminadas.

Uma de suas pesquisas revelou que o Estuário de Santos é um dos locais mais contaminados por microplásticos no mundo. Quais fatores contribuem para essa alta concentração de microplásticos e quais as consequências disso para a região?

Nós publicamos um estudo, se não me engano em 2022 ou 2023, utilizando ostras e mexilhões do Estuário de Santos para monitorar a ocorrência de microplásticos. Quando a gente terminou esse trabalho, fizemos uma seleção de algumas dezenas de outros estudos semelhantes realizados ao redor do mundo, que tinham utilizado os mesmos organismos e a mesma metodologia, e observamos que Santos apresentou algumas das maiores concentrações já registradas na literatura para microplásticos acumulados nos tecidos desses animais.

Para se ter uma ideia, um único animal que a gente analisou chegou a apresentar 300 partículas de microplástico dentro dos seus tecidos. Isso é um nível brutal!

Isso aconteceu porque Santos reúne algumas particularidades. Essa é uma zona muito urbanizada à beira mar e à beira do estuário. Com isso, os aportes de contaminantes, incluindo plásticos e microplásticos, tendem a ser maiores. Mais de 90% dos microplásticos que nós encontramos nesse estudo foram do tipo fibras, sobretudo fibras têxteis provenientes da lavagem de roupas. Então, nós temos aqui na região uma série de estações de tratamento, que coletam o esgoto das residências e tratam antes de jogar no mar, mas os mecanismos de tratamento disponíveis na atualidade não são capazes de remover os microplásticos e nem as fibras (que são também um tipo de microplástico). A consequência é que isso vai parar na água e como esses organismos filtram a água para se alimentar, acabam acumulando quantidades bastante grandes desses materiais.

Isso significa que a água na região tem um alto nível de contaminação por esses resíduos, sugerindo que outros animais que habitam a região podem estar contaminados. E, na medida em que algumas dessas espécies são usadas como alimento, isso pode promover também a transferência de microplástico para as pessoas.

Essa é uma situação isolada no Brasil?

Não, nós também encontramos, por exemplo, níveis muito altos em outro estudo que publicamos sobre o litoral do Rio Grande do Sul. E depois disso, outros estudos ao redor do mundo também mostraram grandes concentrações, em alguns casos até mais altos do que os encontrados aqui em Santos.

Atualmente, além da poluição ambiental, a cada dia aumentam os estudos científicos que detectam microplásticos em diversos órgãos do corpo humano. As pesquisas já conseguem revelar algumas consequências dessa contaminação?

Os microplásticos têm sido encontrados em tudo o que se procura. Entre os órgãos humanos, eles já foram registrados no coração, pulmão, sangue, e recentemente um estudo brasileiro os encontrou no bulbo olfatório, que é uma região do cérebro. Isso indica que nós estamos, assim como os animais, expostos aos microplásticos.

As vias de assimilação desse microplástico nos seres humanos são basicamente três: a água que nós bebemos; a respiração, porque os microplásticos estão no ar; e a alimentação, porque os microplásticos estão nos alimentos – não só os alimentos que vêm do mar, mas também outros, como bebidas engarrafadas, refrigerantes, vinho, cerveja, em vegetais e hortaliças.

Nós estamos expostos a essa sopa de pequenos fragmentos e ainda existem poucas evidências que apontem as consequências dessa exposição para os seres humanos.

Um estudo publicado ano passado na New England Journal of Medicine, mostrou uma possível relação entre a quantidade de microplásticos presentes em placas de ateroma, que são obstruções em coronárias do sistema cardiovascular, e a incidência de doenças cardiovasculares. Já se sabe também que os microplásticos podem provocar danos ao material genético e às membranas plasmáticas das células, que podem provocar processos inflamatórios e, supostamente, câncer. Mas são evidências ainda preliminares, que precisam ser mais bem elaboradas.

Eu estou coordenando, nesse momento, uma proposta de projeto de grande porte, que foi submetido para captação de financiamento junto ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ), visando exatamente entender e congregar vários pesquisadores nacionais dedicados a microplásticos, para entendermos os aspectos ambientais, os aspectos da contaminação via alimentos e os aspectos dos efeitos da saúde. Esse projeto vai fazer um monitoramento em áreas de proteção ambiental ao redor do Brasil para entender a contaminação por microplástico e estudar os microplásticos em alimentos, considerando aspectos regionais. Vamos medir, por exemplo, a presença do microplástico nos alimentos que compõem a cesta básica do Ceará, e fazer uma estimativa de qual a carga de microplástico que o cearense ingere via alimentação. Faremos isso em diferentes regiões do país e, a partir dessa avaliação, vamos entender se essa ingestão causa danos à saúde e quais os impactos reais dessa exposição humana. É um projeto de grandíssimo porte, justamente para estabelecer um escrutínio muito detalhado da exposição ambiental e humana a microplásticos no Brasil.

Na sua opinião, quais seriam as ações mais urgentes e necessárias para mitigar a poluição por plástico?

Eu acho que a mitigação passa por diferentes setores, que devem agir simultaneamente. E é exatamente por isso que é tão difícil conseguir um avanço substancial nas políticas públicas.

Explico: nós precisamos melhorar a reciclagem, tal como está hoje, ela apenas enxuga gelo, e não resolve o problema. Nós também precisamos focar em uma redução da produção, na substituição de plásticos descartáveis por duráveis. Nós precisamos de políticas públicas, nacionais e globais.

Percebam que existem diferentes atores envolvidos nessa questão. Você tem a ciência fornecendo informações sobre a necessidade de uma agenda que reduz a poluição por plástico, ao mesmo tempo que existem lobbies das empresas, cuja atividade econômica está ligada à cadeia dos plásticos, que exercem uma forte pressão sobre os entes políticos, que acabam por protelar ou tornar as ações menos ambiciosas do que seria necessário.

O maior exemplo disso foi o fracasso das discussões durante o INC-5, a reunião que ocorreu em Busan, na Coreia do Sul, no ano passado. Eu estava lá e a previsão era de se chegar a um acordo sobre um Tratado Global, visando reduzir a poluição por plástico. Mas pontos como a redução da produção e o banimento de alguns plásticos que usam substâncias químicas perigosas, acabaram travando as discussões diplomáticas.

Mas o Brasil não precisa esperar pelo Tratado Global. Já existem iniciativas em curso, que poderiam ser encaminhadas. Uma delas é o PL 2524/2022, que tramita a passos muito lentos no parlamento brasileiro, e que visa converter a economia linear do plástico do Brasil em uma economia com maior nível de circularidade.

Ao mesmo tempo, não há ferramentas ainda disponíveis e viáveis economicamente para fazer uma remoção dos plásticos do ambiente. Embora haja alguns estudos, e algumas coisas sendo divulgadas na internet, o raciocínio é muito simples: 75% do planeta é coberto pelo oceano, a maior parte do oceano está a mais de 4 mil metros de profundidade e os plásticos estão desde a superfície até o fundo. Portanto, nós não temos uma viabilidade econômica para as ações eficazes de remoção.

Como o Projeto de Lei 2524/2022 pode, efetivamente, contribuir para que o país avance no sentido de uma solução para a volumosa poluição por plásticos?

O PL 2524 é muito bem estruturado. Sou um apoiador desse PL, já estive na Câmara dos Deputados e no Senado falando sobre ele. O projeto visa converter, ainda que não completamente, a economia nacional do plástico em uma economia circular. Ele visa proibir plásticos oxibiodegradáveis, que já estão proibidos na Europa há anos, mas são os mais vendidos aqui no Brasil, enganando o consumidor ao alegar que são biodegradáveis, sem realmente serem. Ele aborda aspectos da circularidade e prevê uma transição justa para não afetar comunidades de catadores e recicladores. Além disso, ele prevê um redesenho das embalagens. Mas, óbvio, há uma grande resistência, pois todas essas ações, ou pelo menos a maior parte delas, envolvem redução de margem, aumento de gastos e investimentos, principalmente no setor da indústria, que se coloca contra.

De que modo a indústria química e plástica e as corporações podem agir para revertermos a realidade em que estamos imersos?

A indústria teria um papel muito importante a cumprir nessas questões da sustentabilidade, visando reduzir o problema global dos plásticos. Mas muito frequentemente isso significa redução de margem de lucro e saída de uma zona de conforto para novas ferramentas e técnicas de produção, capacitação e, em uma maior parte dos casos, com raríssimas exceções, eu vejo uma grande resistência da indústria de plásticos a adotar ações, de fato, efetivas para reduzir o problema.

O que nós vemos muito é o greenwashing, a lavagem verde. É a empresa se dizendo sustentável, oferecendo um produto supostamente reciclável, mas que não foi desenhado para uma reciclabilidade ideal, ou alegando que o produto é biodegradável, quando na verdade não é. Então, a economia verde e a sustentabilidade também viraram moedas de troca. Quase sempre as empresas maquiam seus produtos de sustentáveis, de verdes, de ecológicos para atrair um consumidor que está cada vez mais consciente e disposto, às vezes, até a gastar mais por um produto que retorna para ele em um benefício ambiental. Mas, na prática, há vários estudos do nosso grupo que analisam esses produtos no mercado, não é o que acontece. Os produtos disponíveis não foram desenhados para uma boa reciclagem, não foram projetados para biodegradar. E aí você tem esses rótulos falsos, essas alegações falsas de sustentabilidade, levando as empresas a ganhar montanhas de dinheiro, mas sem entregar o benefício ambiental que está sendo prometido.

Basicamente, a indústria precisaria buscar alternativas, reduzir a produção de plásticos derivados do petróleo. Mas isso custa caro, e pouquíssimas estão dispostas a isso. A propósito, os países que contribuíram majoritariamente para travar as discussões lá na Coreia do Sul são exatamente os que são grandes produtores de petróleo e que, portanto, não têm grandes interesses em reduzir a produção como sabemos que é necessário e como já foi apontado por vários estudos científicos.

Na sua avaliação, o que não funcionou até aqui e o que precisamos fazer diferente para realmente avançarmos no combate a esse problema?

A grande questão é: você vai precisar da mão pesada do Estado regulando essas ações e obrigando a indústria a seguir por caminhos mais sustentáveis. Se nós dependermos apenas da boa vontade do mercado, essa entidade fantasmagórica, nós não vamos ter avanços, pois, aparentemente, não há alternativa se não for por uma redução na produção, o que significa afetar lucratividade e eficiência produtiva. Então, o governo precisa entrar regulando, estabelecendo prazos e metas para ações regulatórias que visem a redução do problema. Nesse contexto, o Ministério do Meio Ambiente tem trabalhado muito bem. Muito em breve eles devem divulgar uma política nacional de oceano sem plástico, que já prevê muitas das questões que mencionei, como o redesenho da reciclagem. Os produtos precisam voltar para a prancheta, não tem jeito.

Uma garrafa de Coca-Cola, por exemplo, é composta por uma garrafa PET, uma tampa de outro material, um anel que veda a tampa e um rótulo – e isso vira um inferno quando temos que desmontar essa garrafa na reciclagem, individual e manualmente, porque não há maquinário capaz de fazer isso. Então, o que precisa ser feito com garrafas como as da Coca-Cola? Elas precisam ser redesenhadas para, realmente, tornar sua reciclagem viável. Nesse caso estamos falando apenas do PET, que é um dos melhores exemplos de reciclabilidade da cadeia de garrafas plásticas. Mas quando pensamos na infinidade de plásticos que utilizamos, em um mundo ideal, tudo deveria voltar para a prancheta e ser redesenhado para que a reciclagem se torne uma realidade e passe dos meros 4% que reciclamos no Brasil, e dos 9% no mundo, para números que sejam relevantes. Apesar disso, existem modelos estatísticos que mostram que a reciclagem, sozinha, não dá conta do problema do plástico. O que nos leva de volta para a questão da redução da produção, da substituição dos materiais por materiais duráveis e retornáveis, e também passa, necessariamente, por uma regulação estatal forte, que permita e viabilize essas ações.