Junho 28, 2024
“O resíduo plástico é um crime ambiental”
Por: Oceana
O TEMA:
Artivista Mundano versa olhar sobre a luta contra a poluição plástica e defende o PL 2524/2022 para um Brasil sem plásticos descartáveis
Mundano no dicionário é “aquele dado aos prazeres do mundo, próprio da vida cotidiana”. Mundano no Brasil é sinônimo de artivismo ambiental que transforma pessoas e coisas com sua arte, que explode aos olhos dos espectadores como um grito em defesa da natureza.
Em parceria com um coletivo de organizações, incluindo a Oceana, o artista paulistano trouxe para Brasília no final de junho a obra imersiva “O Tsunami de Plástico”. Por meio de uma onda gigante com 10 metros de altura e 20 metros de largura, feita com 1.100 sacolas descartáveis usadas, o fundador da ONG Pimp My Carroça fez um alerta sobre a grave poluição causada pelo plástico. Destaque na programação do 3º Congresso Internacional Cidades Lixo Zero, realizado no Museu Nacional da República, a instalação repercutiu em todo o país, pautando a urgência de aprovação do Projeto de Lei 2524/2022 (conhecido como PL do Oceano Sem Plástico). “Desejo que essa onda impacte os parlamentares pra que eles aprovem nosso Projeto de Lei”, declarou Mundano.
Durante sua passagem por Brasília, Mundano conversou com a Oceana Entrevista. Confira abaixo.
Como foi o processo do seu trabalho artístico se tornar também ativismo em prol do meio ambiente e da sustentabilidade?
Comecei garoto querendo fazer arte, querendo me expressar como uma válvula de escape pro mundo. Registrar os meus pensamentos. Mas, de cara, a primeira experiência no mundo das artes, pintando telas, foi muito frustrante porque a arte que eu acreditava, com a capacidade de fazer as pessoas repensarem a vida, não estava acontecendo. Via que as pessoas só estavam querendo ir às exposições de uma outra forma, e a arte que se vendia era pra ser combinada com o sofá. Fiquei muito frustrado com o mundo da arte. Nesse momento, vou pra rua através da pichação e do grafite que me levou pra lugares inóspitos. Começo, então, a pintar por toda a cidade de São Paulo, debaixo de viadutos, em ocupações. Uma forma de conhecer as desigualdades da cidade e encontrar um sentido pra minha arte, de ser acessível e democrática. Faço esse grafite papo-reto, protestando com frases sobre corrupção, falta de moradia, mobilidade urbana. Foi uma época em que fui bastante censurado pela prefeitura, que saiu apagando os meus grafites. Minha reação foi escrever mensagens mais rápidas. Na sequência, encontro com os catadores e as catadoras em situação de rua, em vulnerabilidade, e proponho pintar os vãos do viaduto onde eles moravam e seus carrinhos e carroças com frases do tipo “Eu reciclo, e você?” e “meu trabalho é honesto, e o seu?”.
Pode-se dizer que foi esta experiência que levou você à mudança da sua forma de conceber arte?
Sou formado pelos catadores e todo esse processo foi motivador. Acho errado dizer que dei voz aos catadores. Eles sempre tiveram vozes, só não eram ouvidos. Eu fui esse amplificador e senti um aumento de autoestima com a pintura dos carrinhos, que virou uma arte móvel pela cidade. Essa foi mesmo a chave pro artivismo, por ali, em 2007, quando comecei também a ouvir o mundo falar mais forte sobre sustentabilidade. Nessa mudança, minha arte ganhou sentido e quem podia escolher o que pintar e de graça eram os catadores. Saía pra pintar 7, 10, 15 carrinhos nos ferros-velhos. Ali, comecei a entender sobre racismo estrutural, consciência ambiental e de classe. O privilégio de ter milhares de horas de conversas com catadores fez eu ter uma visão mais sofisticada sobre o mundo.
Atualmente, fazer artivismo é muito diferente de quando você começou?
Levei cinco anos pintando carrinhos de catadores, viajando pelo Brasil e pelo mundo. E esse foi o meu grande erro porque muitos artistas queriam fazer o mesmo, mas tinham medo de me imitar. Vi, então, a dimensão da categoria e fui atrás de criar cooperativas. Minha arte já estava em capas de jornais, viralizando nas redes e sentia esse poder. Aí, eu criei o Pimp My Carroça, usando humor e arte, pra falar de catadores. Vi a transformação na imprensa, que antes chamava os catadores de materiais recicláveis de catadores de lixo. Fui esse ativista-mala que ligava pras redações e pedia essa correção. Vi também a gente fazer um evento com fila de repórteres pra entrevistar catadores. Viramos um grande movimento de artivistas, de voluntários, viajando o país e transformando nosso movimento numa organização social sem fins lucrativos.
Você avalia que catadores e catadoras ainda seguem invisíveis na nossa sociedade hoje?
Esse é um trabalho gigantesco de conquista de direitos, de organização. O apoio da sociedade civil organizada e de artistas impacta a sociedade. Faz a diferença. Uma vez eu falei: “O catador faz mais que um ministro do meio-ambiente”. A frase viralizou nas redes sociais. Eu vi também essa mudança nas falas dos catadores dizendo que as frases pintadas nos carrinhos mexiam com a percepção da sociedade. Há relatos de que as pessoas passaram a dar dinheiro e até contratá-los pra fazer reciclagem. Tem um catador, Carlão, que fala que o trabalho com o Pimp My Carroça serviu como uma britadeira pra quebrar uma parede que dividia a sociedade e os catadores. A gente não consegue mensurar a dimensão dessas conexões feitas por mais de 3 mil grafiteiros que pintaram as carroças em 14 países. Acredito que melhorou muito essa visibilidade. Mas o desafio é gigante porque ainda há muito a fazer, muito preconceito. Fico feliz quando vejo centenas de professores entrarem em contato comigo pra contar que ensinam reciclagem nas escolas a partir dos catadores.
Como os resíduos plásticos impactam o trabalho de catadores e catadoras hoje?
Minha maior experiência é com os catadores, autônomos, individuais e avulsos, que é a maioria esmagadora em nosso país (93%). Infelizmente, catadores organizados é a ponta desse gigante iceberg de resíduos e de injustiça social. Antes, o que me chocava era que o plástico, por muito tempo, não passava pelas mãos dos catadores individuais. A gente tem os catadores de papelão, os catadores de latinha e os de ferro-velho. Os três maiores materiais coletados por ter um potencial de valor agregado. Tinham até plásticos nos ferros-velhos, mas se pagava muito pouco por eles. Não era interessante pro catador coletá-lo. Agora, com a quantidade absurda de plásticos nas ruas, há uma guinada pra coleta desse material. Vejo os catadores com sacos de latinhas e sacos de garrafas pet. Hoje, nas cooperativas, o plástico está virando o carro-chefe, tamanho o volume do material que chega. Há uma tentativa de criar um valor, mas você tem aquela quantidade infinita de plásticos de uso único que não são recicláveis.
Em parceria com diversas organizações, inclusive a Oceana, você trouxe para Brasília a instalação “O Tsunami de Plástico”. Quais foram as referências e como foi o processo de criação?
A obra é inspirada numa releitura de “A Grande Onda de Kanagawa”, xilogravura do artista japonês Katsushika Hokusai, de 1830. Essa é a pintura mais reproduzida no mundo, mais até que a Monalisa. Na produção, tivemos a participação de catadores e catadoras que foram às cooperativas coletar as sacolas, que foram higienizadas e soldadas uma a uma. É genial essa plasticidade. Foi um desafio fazer essa obra “O Tsunami de Plástico”, pela altura que propomos e pela gravidade e intempéries de ventos. Foi um sucesso imediato, com repercussão em reportagens de diversas línguas. Acredito que essa onda vai viajar muito, levando essa mensagem contra o uso absurdo de plásticos. O que eu desejo é que essa onda impacte os parlamentares pra que eles aprovem o PL [Projeto de Lei] 2524/2022.
O Pimp My Carroça integra a campanha “Pare o Tsunami de Plástico”, que defende a redução da produção de plástico de uso único. Como esta campanha pode contribuir com o trabalho realizado por catadores e catadoras de materiais reciclados?
Com esse PL aprovado, acredito que o estímulo à remuneração justa dos catadores vai aumentar a cadeia do plástico de reciclagem. Vai aumentar também o interesse dos catadores em coletar e diminuir essa quantidade que acaba indo pros rios e oceanos. Ninguém quer ter os rios e oceanos infestados desses plásticos de uso único, que viram rejeito. Um garfinho de plástico que entra numa cooperativa nunca vai ser reciclado. Ele já chega como um rejeito direto. Fico feliz em ver que os catadores querem que parem essa produção plástica. Precisamos gerar outros tipos de embalagens que podem chegar ao ciclo de vida mais circular. Como representante do Pimp My Carroça, é importante estar com a Oceana e essas 80 organizações pra, juntos, colocarmos os catadores como parte dessa solução.
Em seu trabalho artístico “Cinzas da Floresta”, resíduos de queimadas de diversas regiões do Brasil deram origem a pigmentos e tintas. Com quais outras questões a poluição plástica se relaciona e como isso pode ganhar mais atenção pública?
No começo, passaram a me chamar de artista plástico. E como grafiteiro, eu nunca gostei desse termo de artes plásticas. Fiz uma exposição chamada “Resíduos Mundanos”, com tudo feito com 100% resíduos, tintas e papéis. Uma dessas obras se chamava “Artes Plásticas”. Fiz uma arte inquebrável, durável por milhares de muitos anos. O plástico é um material incrível, maravilhoso, você joga no chão e não quebra, é leve, barato, colorido e versátil. E talvez seja, por isso, um problema. É muito mais pelo uso estúpido que se faz dele. Pra arte, é um material muito interessante. Tenho essa pegada de fazer arte com material de crimes ambientais. E o resíduo plástico é um crime ambiental. Tiro ele das praias. Essas 1.100 sacolas que fizeram a obra “O Tsunami de Plástico” foram retiradas da natureza. Elas poderiam estar poluindo os rios e os mares. Aprendi que eu estou cada vez mais incorporando plástico, como esculturas e instalações, pra trazer reflexões. Uso o não-virgem, essa abundância de plásticos que infelizmente temos por aí.
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