"Os governos trocam, mas a sardinha fica – e sofre" - Oceana Brasil
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Setembro 18, 2024

“Os governos trocam, mas a sardinha fica – e sofre”

Professor Lauro Madureira, durante o simpósio “A proteína perfeita", realizado pela Oceana no Colacmar’2024 e CBO’2024. Crédito: Oceana/Bruno Golembiewski

 

Lauro Madureira, especialista em pequenos pelágicos, fala sobre desafios da gestão da sardinha-verdadeira e como a falta de continuidade nas políticas públicas afeta os estoques pesqueiros, em meio às mudanças climáticas

Especialista em pequenos pelágicos, com foco na sardinha-verdadeira, o pesquisador e professor aposentado da Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Lauro Madureira integra o projeto Sat-Sar da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) que, há cinco anos, realiza estudos de monitoramento dos habitats da sardinha-verdadeira e do atum bonito-listrado, a fim de aprimorar o entendimento das flutuações nas capturas e nos deslocamentos geográficos dessas espécies.

Defensor da sustentabilidade dessas pescarias no Brasil, ele aponta que a ausência de dados sobre os estoques pesqueiros e a falta de planejamento da gestão colocam o Brasil em uma situação delicada, especialmente frente às mudanças climáticas. Neste Oceana Entrevista, Madureira, que foi um dos palestrantes do simpósio “A proteína perfeita: desafios para a ciência e manejo sustentável de sardinhas e outros pelágicos no Sul do Atlântico e do Pacífico”, realizado no 20º Congresso Latino-Americano de Ciências do Mar (Colacmar’2024) e 8º Congresso Brasileiro de Oceanografia (CBO’2024), destaca a importância da ciência pesqueira para prever e mitigar riscos, além de sugerir caminhos para aprimorar a gestão pesqueira no país.

 

A Oceana lançou a quarta edição da Auditoria da Pesca Brasil, com um importante levantamento e análise da gestão pesqueira do país como um todo. O estudo identificou que a sardinha-verdadeira é um exemplo dentre 65 estoques pesqueiros marinhos para os quais não há diagnóstico quantitativo com níveis de referência, como estimativas de biomassa e de mortalidade por pesca. Quais os riscos para uma pescaria estratégica como a da sardinha-verdadeira não possuir dados sobre a situação do estoque?

A falta de dados sobre o estoque traz muitos riscos ao sistema de pesca da sardinha. Acredito que, por isso, a frota não receba mais investimentos, especialmente para a manutenção da qualidade da matéria-prima, que é excelente. A pesca de sardinha no ano de 2024 deve atingir cerca de 80 mil toneladas. Esse valor é aproximadamente cinco vezes maior do que as capturas de 2017 a 2019, que foram muito baixas. A matéria-prima necessária para atender as indústrias de enlatamento de sardinha é de cerca de 120 mil toneladas/ano, ou seja, o volume de sardinha capturado pela frota nacional determina o quanto será importado. Essa é uma situação muito complexa de administrar, do ponto de vista da importação, uma vez que os estoques dos países de onde o Brasil importa também oscilam.

Na sua visão, como o debate sobre a proteína perfeita pode contribuir para o aprimoramento da gestão da sardinha no Brasil?

A proteína perfeita, no sentido do livro de Andy Sharpless [CEO da Oceana de 2003 a 2024 e autor do livro “A proteína perfeita”], deve-se ao fato de que a produção de sardinha é natural, produzida pela própria natureza, sem necessidade de adicionar fertilizantes ou pesticidas, como na agricultura moderna de larga escala. Além dessas facilidades, a sardinha contém componentes essenciais à dieta humana como os ácidos graxos. Nos oceanos, a produção de pescados também depende de fertilização. É a variação natural ao longo do tempo, na quantidade de fertilizantes marinhos disponíveis à fotossíntese, que faz com que a produção de sardinha oscile. A quantidade de fertilizantes é controlada pelas correntes, os ventos, ou seja, pelo clima.

Como as mudanças climáticas têm afetado a captura dos pequenos pelágicos, principalmente a sardinha?

As mudanças climáticas fizeram com que a pesca de sardinha no Brasil oscilasse entre 15 mil e 117 mil toneladas nos últimos 30 anos. Não é possível evitar essas oscilações, mas deve ser possível amenizá-las. A sardinha pescada hoje tem de 1,5 a 2 anos de vida, e o que determinou sua abundância foi algo que aconteceu neste período de 1 a 2 anos antes. Em períodos de clima desfavorável à sardinha e, por consequência, com momentos críticos de quebra nas capturas, pode ser necessário que se deixe, antecipadamente, mais sardinhas no mar para desovarem do que em períodos favoráveis. Essa pode ser uma tentativa para reduzir o tempo necessário para a recuperação do estoque à medida em que o clima passa de desfavorável para favorável à espécie. Isso teria que ser feito com a redução da pesca nos momentos críticos. No entanto, dependemos da frota pesqueira para obtenção de amostras e quantificação do tamanho do estoque de sardinha. Quando a frota identifica, por exemplo, um colapso, culpa-se a pesca por isso, mas não deveria, pois essas flutuações são naturais.

Sem que tenhamos a ciência pesqueira, com dados independentes da pesca, não é possível prever quando será necessário reduzir a quantidade de pesca, para seu próprio benefício no futuro. Estudos climáticos associados à atividade pesqueira auxiliam, mas há informações que não podem ser supridas nesse tipo de trabalho, como aqueles sobre os aspectos biológicos e reprodutivos da sardinha. Não depois, mas sim antes ou durante os processos reprodutivos.

E como isso vai afetar, no futuro, as questões de ocorrência, sazonalidade e distribuição? Nós temos como prever esses impactos?

Essa é a bola de cristal que é mais opaca para aqueles países com menos ciência. Sabemos do efeito natural cíclico das oscilações climáticas, mas o efeito do homem no aquecimento global, no nível que está hoje, nunca havia ocorrido. Isso insere um novo fator de risco à pesca, à agricultura, à pecuária, considerando apenas a produção de alimentos. Creio que possamos prever os impactos no curto prazo de um ano, com boa margem de acerto. Em médio e longo prazos, é uma incógnita.

No caso da sardinha, há indicativos de que, gradualmente, ela esteja se deslocando para o Sul, em direção ao Uruguai, onde as águas costeiras já estão mais quentes do que eram, o que pode ser bom para a elas. No entanto, a salinidade daquelas águas costeiras é bem abaixo do tolerável para essa espécie, o que indica que talvez ela já tenha migrado em direção ao polo até o seu limite de tolerância.

Para o futuro da pescaria da sardinha-verdadeira, que tipo de investimentos, iniciativas ou pesquisas precisam ser desenvolvidas e fomentadas – tanto pelo governo, quanto por instituições de pesquisa?

Cruzeiros oceanográficos que monitorem a área de distribuição da sardinha com técnicas de hidroacústica, ovos e larvas, e coleta de amostras in situ são fundamentais. Isso já aconteceu no passado, mas sempre na forma de “apagar incêndio”, ou seja, quando a situação é muito crítica há financiamento de um ou dois cruzeiros. Esse tipo de estratégia gera uma boa quantidade de informações, mas não permite a criação de séries históricas, que são aquelas que literalmente amostram os estoques ao longo das mudanças climática e, portanto, geram muito mais conhecimento, entre os quais aqueles que permitirão trabalhar a gestão de forma preditiva, otimizando a produção a médio e longo prazos.

Temos know-how no país. Precisamos de equipes dedicadas em tempo integral, e não deixar essa tarefa em cima da academia e de órgãos do governo, que têm carência de estruturas e de pessoal. Basicamente, precisamos gerar informações sobre a sardinha sem interrupções associadas a trocas de governo. Como sabemos, os governos trocam, mas a sardinha fica – e sofre.