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A pesca no Brasil segue invisível

Pescadores e pescadoras exigem a revisão da política pesqueira nacional 

Novembro 21, 2023

Christian Braga/Oceana
Com legislação frágil, cadeia da pesca é afetada da captura ao consumo. Christian Braga/Oceana

Até chegar à mesa, a moqueca de peixe, uma das receitas mais apreciadas na culinária brasileira, cruza um longo caminho desde a captura dos pescados até o deleite do consumidor. Entre uma e outra ponta, há uma importante cadeia econômica, que envolve direta e indiretamente diferentes segmentos profissionais. Em uma perspectiva global, dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apontam que a atividade pesqueira atingiu o patamar de 92 milhões de toneladas de proteína produzidas anualmente. Um setor que gera 38 milhões de empregos e movimenta 140 bilhões de dólares.

No Brasil, faltam dados para espelhar essa radiografia. Em 21 de novembro, Dia Mundial da Pesca, o clima não é de comemoração. Pescadores e pescadoras de Norte a Sul do país lidam diariamente com a invisibilidade da cadeia que estão inseridos, resultado da presença ineficaz do Estado que perdura há décadas. Quando comparada a outros setores que produzem alimento, a pesca brasileira – inclusive a pesca industrial – apequena-se, ao não ter informações básicas para embasar políticas setoriais que permitissem colocá-la no lugar que merece.

“Há um apagão de dados e estamos pescando às escuras sem saber o quanto se produz, de quais espécies, por quantos barcos, gerando qual receita. Essas lacunas existem há muito tempo e evidenciam que o governo brasileiro não imprime a essa atividade os atributos de uma política de Estado, que possa promover o desenvolvimento sustentável”, avalia Martin Dias, oceanógrafo e diretor científico da Oceana.

Dias aponta que a maior prova da invisibilidade da pesca no Brasil é o Estado não saber quantos pescadores e pescadoras estão em atividade. “Não há como fazer uma política pública assertiva sem saber para quem está sendo dirigida. Quem são esses profissionais, aonde atuam, o quanto e o que produzem? Não tem como enxergar uma cadeia dinâmica como a da pesca sem monitorá-la. Não há no Brasil um retrato fiel da pesca.”

Um dos problemas trazidos por pescadores e pescadoras artesanais de todo o país é justamente a dificuldade de se conseguir licenças e carteiras de pesca. Esse é um indicativo da falta de estrutura. “A pesca precisa ter as mínimas condições de se desenvolver dentro da legalidade. É como se o Detran não conseguisse emitir os licenciamentos dos veículos ou as carteias de habilitação”, compara Dias.

Não é possível obter números que mostrem a extensão, potência e equilíbrio entre a atividade econômica e a saúde dos estoques pesqueiros dos quais a própria pesca depende. A atual Lei da Pesca (nº 11.959/2009), por exemplo, é totalmente silenciosa, não estabelecendo qualquer obrigação para que o governo avalie e monitore a saúde de estoques pesqueiros de enorme importância como a sardinha, um alimento da cesta básica.

“É evidente que a atividade pesqueira é de suma importância para a segurança alimentar e a garantia de emprego e renda. No entanto, sem monitorarmos os estoques pesqueiros jamais saberemos como estão respondendo à pressão da pesca, tampouco encontraremos meios para equilibrar uso e conservação. A conquista desse equilíbrio passa pelo planejamento e implementação de medidas que visem controlar a pesca e monitorá-la. Só assim vamos dar sustentabilidade e visibilidade a essa pungente cadeia produtiva”, analisa o diretor-geral da Oceana, o oceanólogo Ademilson Zamboni.

Na mais recente Auditoria da Pesca, divulgada neste ano pela Oceana, são identificadas sete razões que justificam a revisão da Lei da Pesca:

  1. Instabilidade e descontinuidade na gestão da pesca;
  2. Falta de estrutura política, tanto no sentido da geração, organização e disponibilização de dados, quanto em relação a estrutura institucional e de processos e regramentos;
  3. É um marco legal tímido em seus objetivos que deveriam abarcar a complexidade da atividade pesqueira no país;
  4. É uma legislação vaga quanto às definições técnicas, não determinando conceitos importantes ao desenvolvimento da pesca sustentável;
  5. Não indica planejamentos de longo prazo, o que inclui planos de gestão, acordos de pesca e outras ferramentas de planejamento;
  6. Tem um espírito centralizador incompatível com as dimensões e a diversidade do país;
  7. Vazia de previsão de recursos orçamentários para sua implementação, o que envolve recursos humanos e financeiros.

SETOR BUSCA MUDANÇAS

Oceana/Hugo Lira
Grupo de Trabalho com setor da pesca artesanal e industrial Foto: Oceana/ Hugo Lira

Há mais de um ano, a Oceana tem realizado oficinas e reuniões com pescadores e pescadoras artesanais de todas as regiões do país, e também com representantes da pesca industrial para apoiar a construção de uma política de pesca que, mais do que incorporar os quesitos da conservação ambiental, reflita as demandas do setor, as diferenças regionais e a diversidade social, cultural e de gênero em um país de dimensões continentais.

Identificando-se como um guardião dos direitos dos pescadores e pescadoras, “seu” Júlio Garcia, que pesca na região de fronteira entre o Amapá e a Guiana Francesa, defende uma nova lei que considere os diferentes aspectos regionais do país. “O que é bom pro Norte, não é bom pro Sul. A pesca daqui, do sujeito amazônico, é diferente da pesca do Nordeste. Então, precisa regionalizar”.

Da Ilha do Mel, no Paraná, o pescador Maurício Agostinho Dias também defende a urgência de uma política que compreenda essas regionalidades e tradições. “Precisamos de informações e de conhecimento para enfrentarmos a especulação imobiliária, por exemplo. É muito importante que a nova minuta de Lei seja um reflexo de tantas vozes diversas para ser de fato uma proposta nacional”, defende o jovem pescador de 28 anos, que integra o Território Nativo e representa o Movimento de Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná (Mopear).

Como resultado desse processo de escuta ativa e construção colaborativa um grupo grande de pessoas – não mais invisíveis – chegaram a um texto base que pode se transformar em um Projeto de Lei com visões múltiplas do setor que abrangem tanto o caráter administrativo quanto o gerencial dos recursos pesqueiros. “É um resultado que se apresenta pelo seu olhar plural para enfrentar os problemas da lei de uma maneira completa e holística”, aponta Dias.

“Esse desenvolvimento da Lei é tão sonhado por nós! Estamos tentando garantir o respeito à nossa categoria. Temos muito orgulho de sermos pescadores, mas até pouco tempo éramos reconhecidos como trabalhador rural. Somos do mar. Eu pesco no Atlântico, na região do Oiapoque”, defendeu “seu” Júlio.

O ALTO PREÇO DA FRAGILIDADE DA LEI

Acervo Oceana
Uma Lei da Pesca forte fiscaliza toda a cadeia produtiva Foto: Acervo/Oceana

Crime ambiental, segundo a legislação brasileira, a Pesca Ilegal, Não Reportada e Não Regulamentada (INN, ou IUU da sigla em inglês) ganha espaço no Brasil graças à fragilidade da legislação em vigor. A atividade criminosa é fonte de diversos impactos ambientais e socioeconômicos percebidos ao longo de toda a cadeia produtiva pesqueira. Afeta desde os ecossistemas até a saúde dos estoques pesqueiros.

“Os atores que integram essa cadeia, em sua maioria, são afetados negativamente com a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada. É ruim para os recursos pesqueiros, para os pescadores, gestores e cientistas. São muitos os prejudicados face os que se beneficiam dessas atividades ilegais”, avalia Martin Dias.

Combater a pesca ilegal é proteger a atividade pesqueira como um todo. O sistema de gestão não funciona sem um bom aparato de fiscalização sobre toda a cadeia. “O cenário ideal é termos um processo no qual pescadores, governo, cientistas e organizações da sociedade civil atuem juntos na construção das regras e, uma vez que se chegue a um acordo sobre o melhor modelo, que a fiscalização atue de forma efetiva para garantir o cumprimento dessas medidas”, propõe o diretor científico da Oceana.