Comitês Permanentes de Gestão – copo meio cheio ou meio vazio?
Ademilson Zamboni*
Outubro 28, 2021
Diz-se que, de um copo com água pela metade, um otimista o enxerga como meio cheio. Já o pessimista, como meio vazio. O realista, por sua vez, apenas o descreve como um copo d´água. Todos, individualmente, têm razão. A sabedoria, contudo, mora na capacidade de bebermos um pouco de cada perspectiva. Do otimismo, vem oportunidades e entusiasmo. Do pessimismo, riscos. E da realidade, o campo concreto de trabalho. Propomos aqui pensar, sob diferentes perspectivas, a retomada dos Comitês Permanentes de Gestão da pesca (CPGs) após dois longos anos.
Iniciemos pelo decreto No 10.736, de 29 de junho de 2021, que instituiu o que agora se denomina Rede Nacional Colaborativa para a Gestão Sustentável dos Recursos Pesqueiros, da qual os CPGs são protagonistas. Fato posto, olhemos o copo meio cheio. A retomada dos comitês é, sim, razão para celebrarmos. Afinal de contas, eles são onde institucionalmente os debates sobre a gestão da pesca no Brasil ocorriam até 2019. Sem CPGs, não há um processo formal para consultas aos atores com transparência na formulação e revisão do quadro normativo pesqueiro nacional.
Seu retorno – aguardado para a “pós- pandemia” – traz oportunidades para rever regulações ultrapassadas, fonte contínua de tensões sociais e impactos ambientais. É a oportunidade para retomar uma agenda de elaboração, discussão e implementação de planos de gestão necessários a mais de 90% dos recursos pesqueiros marinhos explorados. Os CPGs abrem as portas para o debate sobre a modernização do monitoramento e controle da pesca, como as cotas de captura, essenciais para uma atividade sustentável e produtiva.
Do outro lado, a metade vazia do copo. É bem verdade que “antes tarde do que nunca”. Mas é impossível não sentir o gosto amargo do tempo perdido desde a extinção dos CPGs. Discussões congeladas com as áreas produtiva e ambiental, embarcadas no atraso da formulação de políticas.
Também não é positivo ver que a instabilidade ainda persiste. Afinal, por melhor que seja a notícia da recriação dos comitês, não há nada que elimine o risco de sua revogação. A precária governança da pesca alicerçada em normas infralegais, facilmente revogáveis, sinaliza que a estabilidade desses fóruns não está garantida.
Mas, no fim das contas, o que resta é o mundo real. O simples copo d´água. Os CPGs estão aí, e precisamos trabalhar para que, no pós-pandemia, eles cumpram seu propósito e sigam existindo.
É fundamental vincular aos recém-criados grupos uma agenda focada nos Planos de Gestão. As bases técnicas para isso foram idealizadas lá em 2015, quando o extinto Ministério da Pesca e Aquicultura fez um investimento modesto, mas relevante, em pesquisa pesqueira, transferindo recursos para universidades estudarem a pesca via repasses do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os projetos em curso, muitos com resultados já disponíveis, têm de ser o pontapé de uma discussão pragmática sobre as possíveis soluções para o complexo mundo da pesca.
Com os obstáculos que essa complexidade traz, o sucesso dos comitês só ocorrerá com a participação equilibrada e democrática de representantes das diferentes partes interessadas – muitas vezes longe de Brasília. E até nisso a pandemia nos mostrou novas formas de reunir pessoas fisicamente distantes, que podem otimizar tempo e recursos.
Ademais não precisaremos reinventar a roda. Muitas agendas, que foram simplesmente descontinuadas, podem ser facilmente retomadas. É o caso do debate acerca dos limites de captura para a pesca da lagosta – recurso que enfrenta um quadro delicado de sobrepesca. O mesmo pode se dizer sobre o pargo, que possui um plano de recuperação com ações claras para serem objeto de debate e decisão do CPG Demersais N/NE.
Por último, mas não menos importante, está o diálogo sobre como trazer maior estabilidade para a governança da pesca. O risco de uma nova perda dos comitês somente será eliminado quando o quadro estrutural de gestão estiver estabelecido em Lei, não em decretos ou portarias. Há tempos que falamos sobre a importância de modernizarmos a Lei da Pesca (Lei 11.959/2009). Assim, a inclusão dos CPGs na legislação é um dos motivos pelos quais levantamos essa bandeira.
Iniciemos, pois, mais esta marcha. Com o entusiasmo dos otimistas para identificar e agir nas oportunidades que os CPGs nos trazem. Mas sempre conscientes de que, assim como eles surgiram, podem novamente desaparecer. Valorizemos, então, o nosso tempo e as lições desses dias de distância. E, para isso, nada melhor do que nos apegarmos ao mundo real, criando uma agenda sólida de trabalho que aos poucos, mas continuamente, nos conduza a um novo marco legal que substitua a fraca Lei 11.959.
*Diretor-geral da Oceana Brasil. Oceanólogo, mestre e doutor em Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo.
Artigo publicado no 7º Anuário da Seafood Brasil