Falta de dados sobre a pesca priva pescadores de seus direitos
Junho 29, 2020
No Dia do Pescador, 29 de junho, a Oceana reforça a importância de produzir dados oficiais sobre a atividade e de recriar o ambiente de participação da sociedade na gestão pesqueira nacional.
De norte a sul do país, pescadores e pescadoras somam mais de 800 mil pessoas, de acordo com estimativas do setor. São homens e mulheres que extraem da natureza o seu alimento e a renda da família, garantem a proteína do pescado na mesa do brasileiro, mas vivem à margem de políticas públicas sólidas e estruturantes, reflexo de anos de instabilidade institucional na gestão da pesca.
“A pesca no Brasil é uma atividade importante para a economia, para a segurança alimentar e para a cultura de centenas de comunidades. Apesar disso, o país está devendo em termos de políticas públicas que atendam a demanda e a complexidade do setor. Não existe aqui nenhum prazer em repetir, mas é inevitável lembrar que estamos há uma década sem produzir dados oficiais e transparentes sobre a pesca, o que dificulta avançar na direção de uma atividade mais moderna, inclusiva e justa para quem vive dela e para o ambiente que provê o pão de cada dia”, afirma o diretor-geral da Oceana, o oceanólogo Ademilson Zamboni.
Com a falta de estatísticas na pesca, trabalhadores acabam muitas vezes privados de seus direitos e de proteção, especialmente em situações adversas. Foi o que ocorreu recentemente com o desastre com óleo no litoral brasileiro. O receio de contaminação nos pescados e a queda no turismo impossibilitaram a pesca na maioria dos estados costeiros. Um cenário similar ocorre com a pandemia pelo novo coronavírus (COVID-19), que interditou praias, fechou mercados e feiras.
Sem dados sobre a produção pesqueira não é possível dimensionar o nível do impacto socioeconômico que esses grupos vêm sofrendo. “Nossas maiores dificuldades são conseguir vender a produção e repor material de pesca, pois as lojas municipais estão fechadas”, conta o pescador artesanal Flávio Lontro, representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem).
Brasil desconhece quem pesca
Privados de exercer a atividade, muitos pescadores artesanais enfrentaram uma batalha para receber os benefícios e auxílios destinados aos trabalhadores do setor. A questão é que o Brasil não sabe quantos e quem são nossos pescadores, assim como desconhece onde eles pescam, com que artes, e até mesmo como está a saúde dos recursos pesqueiros.
Um dos principais gargalos para o reconhecimento dos direitos dos pescadores e pescadoras apontados por lideranças comunitárias é a falta de emissão do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP). “Há milhares de pescadores no Brasil que possuem apenas o protocolo de entrada no documento, mas até hoje não receberam a carteira”, afirma a liderança Ormezita Barbosa, secretária-executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
Para o pescador Francisco Antônio Bezerra, presidente da Colônia de Pescadores Z-33, localizada em Areia Branca (RN), a retomada das estatísticas e a concessão do registro são essenciais para o desenvolvimento da pesca no país. “O RPG é a vida do pescador, é a prova de que ele está na atividade e pode fazer valer os seus direitos”, reforça.
Previsto na Lei 11.959/2009, o documento deve integrar um sistema de informação governamental que registra todas os pescadores e embarcações autorizadas a pescar no Brasil. “Ter um sistema de registro de pescadores e embarcações que funcione é o “be-a-bá”. Se o registro não funciona, a gestão da pesca também não funciona. Além disso, a insegurança dos pescadores aumenta, assim como a pesca ilegal, o que não é bom sob nenhuma perspectiva”, explica Zamboni.
Brasil desconhece a produção
Se estatística pesqueira é importante para a pesca de larga escala, o que dirá para a pesca artesanal? “Não tem como investir na pesca se não tiver a menor noção do que está acontecendo com a produção”, afirma o representante da Confrem, Flávio Lontro. “O país desconhece o quanto a indústria do petróleo está afetando a pesca, assim como a poluição dos oceanos e as mudanças climáticas”, enumera.
O Brasil é um dos poucos países que não reporta dados oficiais de produção à Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), como relatado na edição 2020 do Estado Mundial da Pesca e da Aquicultura (Sofia). Com isso, a FAO se vê obrigada a fazer estimativas sobre a produção brasileira desde 2014. Outros países com essa dificuldade, como Mianmar e Indonésia, já iniciaram medidas para padronizar a coleta de dados.
A fragilidade observada internacionalmente na gestão brasileira é sentida na pele por quem vive dos recursos do mar. “O Brasil tem uma dívida histórica com os pescadores porque não conseguiu construir uma política de Estado para a pesca no país. O sentimento que nós temos é de estar sempre recomeçando, reiniciando”, observa Ormezita Barbosa.
Espaços de discussão extintos
Um sintoma da qualidade da gestão pesqueira nacional está nos Comitês Permanentes de Gestão (CPGs). Essas instâncias de discussão entre governo, setor produtivo, pesquisadores e organizações da sociedade civil organizada, foram extintas em junho de 2019 e até o momento não foram recriadas. Mesmo sem esses fóruns, lideranças de pescadores e pescadoras se reúnem e deliberam sobre suas demandas.
Em dezembro passado, por exemplo, pescadores artesanais de lagosta entregaram um documento à Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP) no qual pediam a retomada do CPG-Lagosta, a inclusão da pesca artesanal na definição da norma para cotas, a criação de uma área de exclusão da pesca para proteger lagosta juvenil e a proibição de captura e comercialização de lagosta ovada, entre outras demandas. A SAP se comprometeu a estudar o assunto.
Agora, em mais um Dia do Pescador, esses homens e mulheres pedem a retomada da estatística pesqueira para que tenham – entre outras coisas – melhores condições de trabalho e apoio em situações emergenciais como a do derramamento de óleo de origem até hoje desconhecida e da pandemia pelo novo coronavírus.
Mais do que isso, os pescadores, a economia pesqueira e o meio ambiente merecem um novo marco legal – mais arrojado, moderno, conectado com técnicas inovadoras de coleta de dados, que incorpore a ciência cidadã e tenha como norte a transparência na gestão pesqueira nacional.