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As incongruências da matriz de permissionamento de embarcações

Abril 22, 2020

Foto: LX | OCEANA

A Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP) publicou a Instrução Normativa (IN) No 08, de 6 de abril de 2020, alterando o Anexo IV da já conhecida IN 10/2011 – a norma que define o permissionamento de embarcações pesqueiras brasileiras. Desta vez, a alteração ampliou o número de espécies-alvo da frota de cerco durante o defeso da sardinha-verdadeira.

A mudança demonstra mais uma vez que a gestão pesqueira no Brasil, presa na armadilha da instabilidade institucional, da falta de estrutura e das pilhas de processos judiciais, segue apenas tratando sintomas. Enquanto isso, os problemas estruturantes, sem apetite para serem enfrentados, persistem, e fazem a pesca andar em círculos. Quando as causas serão de fato tratadas como política de Estado?

O remendo do Anexo IV da IN 10 adicionou mais nove espécies como “alvo” das autorizações complementares da frota de sardinha-verdadeira. Dentre as principais inclusões, destacam-se os pequenos atuns (bonito-cachorro e pintado), a cioba, a cavalinha e a pescada cambucu (uma espécie demersal). Em tese, isso pouco significa em termos práticos. Afinal, não há uma definição clara de “alvo” e “fauna acompanhante” na pesca de cerco, algo que pode ser constatado na própria IN 10.

Além das contradições citadas, os “erros técnicos” na identificação de espécies seguem ocorrendo. Desta vez foi o caso da pescada-bicuda. A bicuda, como é popularmente chamada, uma espécie da família das barracudas (Sphyraenidae), é comumente encontrada no meio de cardumes de pequenos pelágicos. A espécie, por ter nome de “pescada”, acabou classificada como (Cynoscion microlepidotus) pertencente à família das pescadas (Sciaenidae). Curiosamente, não existem descrições de Cynoscion microlepidotus na literatura pesqueira do Brasil. Resultado: permanece parte da insegurança jurídica que se tentou contornar ao ampliar a lista de espécies, e quem de fato descarregar “pescada bicuda” vai seguir em desacordo com a IN 10.

A IN 10/2011 deveria ser revisada por completo. A SAP até iniciou tal movimento por meio de workshop, mas a pouca de transparência impede que a sociedade contribua e acompanhe o processo e seus desdobramentos As autorizações complementares, por exemplo, são uma excentricidade (para não dizer aberração) do sistema de registro que dificulta nosso ordenamento pesqueiro. Listar faunas acompanhantes também abre perigoso precedente, uma vez que na prática até mesmo espécies de camarão podem ocasionalmente ocorrer em um desembarque de sardinha. Seria a IN 10 o instrumento ideal para detalhar as centenas de espécies acompanhantes?

Certamente muitos ficarão chocados com a inclusão de espécies como a pescada-cambucu ou a cioba na lista da frota de cerco – e os precedentes que isso representa. A reação a isso pode ser, por exemplo, a solicitação de revogação da IN 08/2020. Outros tantos celebrarão, e pedirão a inclusão de mais espécies nas futuras listas. Mas os esforços gastos, tanto nas críticas quanto nos pedidos, seriam melhor aplicados se os direcionássemos à causa real do problema: a falta de um plano de ordenamento para a pesca de cerco no Sudeste e Sul do Brasil.

É preciso uma mudança urgente no rumo. Enquanto não se considerar a pesca de cerco uma pescaria multiespecífica com alvos sazonais e for construído um plano de gestão que abarque toda a frota, os problemas não estarão resolvidos. Na rota atual, seguir-se-á gastando energia discutindo os remendos do “irremendável”. Tão grave quanto “o fato” em si é “a mensagem” que o poder público passa mais uma vez: a de que a pesca deve se acostumar com  cenários da insegurança jurídica, que prejudicam produtores, e com a ineficácia da gestão da pesca de cerco, que resulta em sobrepesca, impactos ambientais e socioeconômicos.

Artigo de autoria do diretor-geral da Oceana no Brasil, Ademilson Zamboni, publicado no dia 20/04/2020 na revista Seafood Brasil.