Agosto 31, 2023
“Quem sofre mais com a destruição dos oceanos são as pessoas com menos recursos”
Por: Patricia Bonilha
O TEMA:
Surfista recordista mundial de ondas gigantes, membro do Conselho Diretor da Oceana, Campeã da Unesco para o Oceano e a Juventude. Maya Gabeira, de muitas maneiras amplia e atualiza o conceito de “inspiração”. Neste mês de agosto, ela saiu de Nazaré, vila onde vive em Portugal, e embarcou diretamente para Brasília especialmente para participar do lançamento da campanha Pare o Tsunami de Plástico. Em uma agenda bastante intensa, reuniu-se com autoridades do primeiro escalão do Executivo e do Legislativo, deu entrevistas a diversos veículos de imprensa e fez muito ativismo digital. Nesta edição especial da Oceana Entrevista, ela nos conta sobre alguns ensinamentos que a vida, e a morte, lhe deram e porque passou a se dedicar, incansavelmente, à proteção dos oceanos.
Por que o mar é tão especial pra você?
O mar é o meu refúgio! Eu comecei a surfar quando tinha 13 anos. Antes disso, eu ia pro mar com meus pais a passeio, sem ondas. Com 13 anos, eu me encantei pelo surf, e o mar virou o lugar em que eu mais me sentia bem, em que eu mais me sentia eu, em que eu mais me sentia presente. Com o passar dos anos, o surf se tornou a minha profissão. Eu pude viajar o mundo surfando, conheci diferentes culturas, lugares e mares. Até hoje, quando eu estou com problemas, estou mal, é impressionante como pular no mar, surfar ou estar na água salgada é uma cura pra mim. É uma imensidão de vida, energia, possibilidades que me re-energiza muito. Eu não conseguiria me imaginar sem ter o mar e sem ter esse refúgio para onde correr e sentir todas essas sensações que eu consigo sentir, e viver todos esses momentos espetaculares dentro d’água.
Atualmente, quais são suas maiores preocupações em relação aos oceanos?
São inúmeras. Para citar algumas: acidificação, elevação do nível do mar, perda de biodiversidade, pesca ilegal, pesca de arrasto, destruição de habitats, plástico, poluição, indústria petroleira, que continua querendo destruir para extrair. Talvez, muitas pessoas não saibam que 50% do nosso oxigênio vem do mar, e que o colapso dos oceanos é o fim da vida na Terra. Nem que os oceanos têm muito a nos ajudar a combater a crise climática, que já chega quase em um lugar irreversível. Além disso, os mais prejudicados serem, de fato, as comunidades ribeirinhas e, por muitas vezes, os países subdesenvolvidos ou ainda em desenvolvimento. Porque quem acaba sofrendo mais com toda essa falta de cuidado e essa destruição dos oceanos são as pessoas com menos recursos.
Você teve alguma experiência marcante na sua vida relacionada à poluição por plástico?
Eu já fui muito impactada com a sensação de lixo e plástico nas Maldivas na Indonésia. Por serem ilhas e arquipélagos, você não consegue mais escapar do plástico. Além do uso do plástico ser muito alto nesses lugares, principalmente na Indonésia, onde é altíssimo. É muito estranho você estar em um lugar tão longe, tão paradisíaco e, no momento em que você surfa é, completamente, imerso em plástico. É de um desconforto absoluto você ter que remar e jogar um chinelo pro lado; dar outra remada, um isqueiro; na próxima, um saco; na outra, uma fralda… Onde que isso vai acabar?
O que as pessoas podem fazer para contribuir com a redução dessa poluição?
É sempre complexo dizer o que o outro pode fazer pelo problema. O que posso afirmar pela minha experiência é que é preciso se engajar e entender o problema. É fato que não sobreviveremos sem os oceanos e que, de certa forma, o oceano é uma grande oportunidade de trabalho, de economia azul, de avanço social, econômico, tecnológico. A gente conhece menos o oceano do que conhece a lua. A gente tem muito que aprender a extrair as coisas que são circuláveis, a ter cota de pesca para cada espécie, a se alimentar e não acabar com todos os peixes do mundo. A gente tem formas de pescar sem causar a destruição do arrasto no fundo dos oceanos. Já temos as soluções. Agora é preciso querer mudança. Eu sempre digo, mudar talvez seja a coisa mais difícil que o ser humano pode fazer. A gente está em um momento em que a mudança é necessária. Então, é partir para se engajar, para entender o problema e ser parte da solução.
E o que os governos e as empresas devem fazer?
A gente pensa muito. Você não pode mais comprar uma garrafa pet, você tem que estar com a sua garrafinha para encher de água no filtro, você não pode comprar isso, você não pode comprar aquilo…Até o momento em que você se depara com um posto de gasolina, morrendo de sede. Você não tem o que fazer, não tem nem onde encher sua garrafinha e nem uma garrafa de vidro. E, aí, fica claro que só a escolha do consumidor não vai acabar com o problema porque, na verdade, muitas das vezes o consumidor não tem escolha. Então, cabe sim ao governo e a quem institui as leis começar a estipular limite para a produção do plástico. A gente, na verdade, não podia nem mais produzir plástico. E a indústria do plástico tem que começar a se reinventar. O plástico é um material que, realmente, tem seus benefícios, um custo muito baixo. Ele é muito confortável de usar para alimentação, para bebida, para cosméticos, mas a gente está pagando um preço muito alto como. A indústria do plástico tem, sim, que se reinventar, tem que ter cotas, limites e tem que começar a investir em tecnologia para se transformar e oferecer outras soluções de materiais. Porque a gente não vai mais aceitar o plástico de uso descartável, aquele plástico que a gente usa uma vez, e acaba no fundo do mar, fica lá para sempre, vira um microplástico. Isso já está no nosso sangue, no nosso corpo, no nosso ar, não é mais aceitável. Então, essa indústria, que é extremamente poderosa e lucrativa, tem que investir para se autotransformar.
Você poderia dar alguns exemplos de projetos bem-sucedidos na área de preservação dos oceanos que você destacaria?
Existem muitos lugares que se tornaram reservas de proteção e a vida voltou a ser abundante. A gente sabe de países que implementaram cotas para a pesca de certas espécies, baseadas em estudos científicos, e os peixes voltaram em dobro, em triplo. A espécie se recompôs completamente. Recentemente, a gente viu as baleias no Pacífico, que já estavam quase em extinção, pela lei de proibição de rotas de barco, voltaram a procriar e a população começando a se recuperar. Você vê que tem medidas que, realmente, geram resultado. O otimismo de lutar pela preservação dos oceanos é você saber que ele, de fato, se regenera. Isso é provado. O mar tem uma característica de se regenerar muito grande. É completamente possível reverter muitas das coisas que a gente matou e muitas das espécies que a gente quase acabou, quase levou à extinção. Acho que a gente luta por isso. A gente sabe que tem volta, a gente sabe que tem caminho se a gente fizer o que precisa ser feito.
O que falta para o Brasil avançar e se tornar um protagonista mundial na proteção dos oceanos?
Falta avançar nas leis de limite à produção do plástico. Essa é uma indústria extremamente poderosa, que tem muita influência nos governos também. Temos que descobrir como frear essa indústria que tem um lucro extremamente alto Quem tem poder, não quer perdê-lo; quem tem dinheiro, também não quer perder seu dinheiro. As pessoas que estão se beneficiando dessa indústria do plástico são poucas em relação a todas que vão pagar pelo alto custo de ter todo esse volume de plástico, que não será reciclado, em todo o mundo, principalmente nos oceanos.
O acidente que você sofreu te influenciou, de algum modo, a ser a ativista que você se tornou?
O meu esporte, de surf de ondas grandes, é um esporte de alto risco. Em 2003, eu tive um acidente em que eu quase perdi a vida. Tive outros acidentes sérios, lesões super graves. Pude participar, recentemente, da recuperação de alguém do meu time, do meu videógrafo, que também esteve à beira da morte e está se recuperando agora. Então, a morte é algo que eu tenho que lidar, por já ter tido experiência de vida e morte. Você tem que aprender a lidar com essa sabedoria de que acaba. É difícil, mas é real. Eu senti na pele que a vida pode acabar de um dia para o outro, e a gente não tem esse controle. Quando eu tive o meu acidente, eu tive que me estruturar muito emocionalmente e fisicamente porque eu estava muito lesionada para voltar a surfar onda grande, voltar a fazer aquilo que tinha me colocado na situação de quase morte. Isso trouxe uma certeza de que a gente vem pro mundo cada um na sua missão, mas eu acho que a missão ela nunca é nossa, ela tem que ser em prol dos outros e das próximas gerações. Eu vi o quão privilegiada eu era. Eu quase morri, mas eu consegui ter uma segunda chance, eu consegui voltar pro meu esporte de alta performance. Ninguém imaginava que, depois de quatro anos de recuperação, eu conseguiria implementar o primeiro recorde feminino, conseguiria superar o meu recorde feminino e ter o segundo recorde feminino, que até hoje é meu. Com todas essas superações, o surf ficou pequeno. Eu comecei a perceber que tinham outros problemas, outros desafios muito maiores no mundo. Naturalmente, a preservação dos oceanos entrou muito forte na minha vida. E também a compaixão. Acho que a experiência de vida e morte e o sofrimento, e ver outras pessoas passando por situações muito limite me fez perceber que o mundo não é justo. Mas que eu podia fazer um pouco por essas pessoas e essa desigualdade que a gente vive. E o oceano é de todos. A natureza, os bens naturais, eles são da humanidade. Eles precisam ser preservados. Aí, você faz, porque você se sente na responsabilidade, porque você já é o lado afortunado. Não ter essa noção, essa responsabilidade sobre esse privilégio seria uma lástima.
Confira a entrevista em vídeo: