*Por Iran Magno, Jemilli Viaggi, João Malavolta, Julia Catão e Paula Johns
E se ainda hoje fôssemos capazes de enfrentar a grave crise da poluição plástica e construir um país mais limpo, com um futuro saudável para a nossa e as próximas gerações? Esse é o compromisso da campanha “Pare o Tsunami de Plástico”, fruto do esforço coletivo de mais de 80 organizações da sociedade civil. A iniciativa busca engajar o Brasil no apoio ao Projeto de Lei (PL) 2524/2022, que propõe medidas para a implantação de uma Economia Circular do Plástico. Mais de 84 mil cidadãs e cidadãos já assinaram o abaixo-assinado em defesa do PL, que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) no Senado Federal.
Esse coletivo reúne organizações de todo o país, com atuações diversas – da proteção oceânica à saúde pública, de movimentos de pesca artesanal a catadores de materiais recicláveis, de ONGs ambientalistas a associações de escoteiros, de organizações urbanas a grupos de surfistas. Essa diversidade reflete o que a poluição plástica se tornou: um problema sem fronteiras. Nos anos 1970, os primeiros estudos a identificaram como uma perturbação no ambiente marinho. Hoje, cinco décadas depois, a ciência confirma seu caráter onipresente, até mesmo em locais antes inimagináveis.
Um alerta preocupante, feito a partir de investigações científicas da presença do plástico em nosso organismo, aponta: nós, humanos, já estamos inundados de partículas de plástico. Diversos estudos recentes têm constatado a presença do material em órgãos vitais, como coração, pulmão, fígado e placenta, entre outros. Em 2024, uma pesquisa liderada por cientistas brasileiros revelou um dado estarrecedor: nem mesmo o cérebro – o órgão mais protegido do nosso corpo – está imune à presença de microplásticos (Amato-Lourenço et al., 2024). Portanto, a poluição plástica deixou de ser um problema ambiental e se tornou também uma questão de saúde pública.
É urgente que alguma forma de solução efetiva seja tomada para reverter esse quadro. Há décadas, a responsabilidade por essa poluição foi colocada sobre o consumidor. Por isso, há um imaginário já bem concretizado de que a solução para esse problema depende de todo cidadão separar corretamente o seu próprio lixo – que, assim, seria encaminhado para a reciclagem. Seria muito bom se fosse verdade, mas infelizmente a realidade está bem distante disso. Entre 1950 e 2017, apenas 9% de todo o plástico produzido globalmente foi reciclado. Enquanto isso, a produção segue em ritmo acelerado, com a projeção de triplicar até 2050.
Desde os anos 2000, a produção global de plásticos de uso único dobrou. Esses produtos são projetados para uso rápido e descarte imediato, tendo uma vida útil muito curta e pouca ou nenhuma viabilidade para reutilização ou reciclagem. No Brasil, atualmente, produzimos 500 bilhões de itens de plástico de uso único todos os anos – entre sacolas, copos, talheres e embalagens em geral (Iwanick; Zamboni, 2020). Como resultado, nosso país é hoje o oitavo maior poluidor global de plásticos e polui nossos oceanos anualmente com cerca de 1,3 milhão de toneladas de resíduos plásticos (Magno, 2024), o que representa 8% do volume global de plásticos que chega aos mares de todo o mundo.
Nos tornamos uma sociedade imersa em plástico. Bebemos água em garrafas de plástico, com tampas de plástico e canudos de plástico. Carregamos compras já embaladas em plástico dentro de outras sacolas plásticas. Nossos produtos de higiene e limpeza também vêm acondicionados em plástico e mesmo os palitos de dentes de madeira hoje são, muitas vezes, embalados um a um em saquinhos de plástico.
Por trás disso estão as escolhas de um modelo de produção que privilegia o plástico: ainda são feitos volumosos investimentos em itens de uso rápido e descarte imediato, muitos nem sequer recicláveis. O PL 2524/2022, defendido pela campanha “Pare o Tsunami de Plástico”, reforça que precisamos e podemos fazer escolhas mais inteligentes na produção de itens de plástico, assegurando que tudo que for produzido no país seja de fato reciclável, apto ao reuso ou ainda comprovadamente compostável. O primeiro passo proposto por essa iniciativa é “fechar a torneira” de produção desses descartáveis problemáticos, e o estabelecimento de um prazo de adequação para descontinuar a produção.
Esse tipo de regulação já é uma realidade em diversos países – bastante distintos tanto do ponto de vista social como econômico – como Chile, Canadá, Gana, Nigéria e os estados-membros da União Europeia, para citar apenas alguns. O texto do PL ainda propõe a inclusão de catadoras e catadores de materiais recicláveis no Programa de Pagamentos por Serviços Ambientais, em reconhecimento ao serviço ambiental que prestam à sociedade, já que a reciclagem é parte importante da solução e uma atividade econômica relevante em nosso país – mas, sozinha, não vai virar o jogo dessa crescente poluição.
Além da produção de plástico em si, temos que lembrar, como parte da equação, dos grandes usuários de plástico – e, consequentemente, grandes poluidores. O movimento Break Free From Plastic, que audita as corporações mais poluentes a partir do lixo encontrado no mar, segue revelando as mesmas empresas internacionais no topo do ranking. A Coca-Cola, que no último ranking divulgado para o ano de 2023, liderava essa auditoria pelo sexto ano consecutivo, acabou de abandonar suas metas de sustentabilidade e seus compromissos globais de redução do uso de plástico e ampliação do reuso (Oceana, 2024).
A poluição ainda é um problema que agrava a vulnerabilidade de algumas populações. O relatório Neglected – Environmental Justice Impacts of Marine Litter and Plastic Pollution, publicado em 2021 pela Organização das Nações Unidas (ONU), analisou uma série de estudos de caso pelo mundo apontando alguns desses graves problemas, incluindo desmatamento e remoção forçada de comunidades para a extração de petróleo, contaminação da água potável por fluidos de fracking, problemas de saúde em comunidades próximas refinarias, e perigos ocupacionais para catadores de materiais recicláveis. O relatório enfatiza a importância de dar visibilidade às pessoas afetadas e incluí-las nos processos de decisão para encontrar soluções para a poluição plástica.
Mas se não faltam evidências científicas para atestar a gravidade do problema, considerado também pela ONU como a segunda maior ameaça ambiental ao planeta, e se já temos informação suficiente para fazermos escolhas mais inteligentes, o que ainda falta para resolver o problema?
As medidas que hoje existem no Brasil para lidar com a poluição plástica ainda tocam o problema de forma tangencial e distante, sempre focadas em seus sintomas, com a gestão do resíduo como elemento central, e não miram na raiz do problema: o modelo de produção. E é exatamente aí que a atuação do Poder Público tem deixado a desejar.
Não é surpreendente que a indústria do plástico siga se isentando de sua responsabilidade, terceirizando a solução ao consumidor e à reciclagem – mas a falta de atenção do Poder Público requer nossa atenção. Dependente do petróleo, essa indústria age de maneira bastante similar acerca da emergência climática, resistindo em mudar a forma como produz, e até mesmo em debater soluções, mantendo um modelo que produz mais e mais plástico, que rapidamente vira lixo e causa imensos problemas socioambientais. Diante dessa falta de qualquer compromisso confiável desse setor com os pilares da sustentabilidade, cabe ao Poder Público cumprir o seu papel e garantir o bem-estar coletivo e a saúde pública.
Em pouco mais de cinquenta anos, desde que os descartáveis se tornaram uma constante em nossas vidas, nos tornamos um planeta inundado de plástico. Cabe às presentes gerações utilizarem todo seu potencial criativo, sua atuação cidadã e responsabilidade não apenas para separar seu lixo, mas também para se posicionar e chamar o Poder Público à sua obrigação de liderar o país rumo a um futuro em que essa poluição não seja mais uma catástrofe instaurada e onipresente. É esse convite que a campanha “Pare o Tsunami de Plástico” faz a toda a sociedade: exigir que o Brasil adote regulações mais rigorosas e eficazes para conter essa crise. O futuro depende das escolhas que fazemos hoje – e a mudança começa agora.
*Iran Magno (Oceana), Jemilli Viaggi (Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano e Rede Oceano Limpo), João Malavolta (Instituto Ecosurf), Julia Catão (Instituto de Defesa dos Consumidores – IDEC) e Paula Johns (ACT-Promoção da Saúde). Artigo originalmente publicado na revista Diálogos Socioambientais (USP/UFABC).
Referências:
AMATO-LOURENÇO, L. F.; DANTAS, K. C.; JÚNIOR, G. R.; et al. Microplastics in the olfactory bulb of the human brain. JAMA Network Open, 7, (9), p. e2440018, 2024. 10.1001/jamanetworkopen.2024.40018.
OCEANA. Coca-Cola abandona metas de redução e reutilização de plástico descartável, 2024. Disponível em: <https://brasil.oceana.org/blog/coca-cola-abandona-metas-de-reducao-e-reutilizacao-de-plastico-descartavel>. Acesso em: 26 fev. 2025.
IWANICKI, L.; ZAMBONI, A. Um oceano livre de plástico [livro eletrônico]: desafios para reduzir a poluição marinha no Brasil. 1. ed. Brasília, DF: Oceana Brasil, 2020.
MAGNO, I. (org.). Fragmentos da destruição: impactos do plástico na biodiversidade marinha brasileira. 1. ed. Brasília, DF: Oceana Brasil, 2024.
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