Setembro 26, 2022
“A Lei da Pesca é apenas uma carta de princípios, incapaz de promover a governança do setor”
Por: Oceana
O TEMA: Lei da Pesca
Especialista em Gestão Pública e Mudanças Climáticas, Kamyla Borges Cunha nunca tinha tido uma relação muito próxima do mar. Nascida em Uberlândia (MG), ela tinha em sua memória, no máximo, lembranças da menina que visitava sítios e a pesca recreativa em tanques de criação. Depois que mergulhou a fundo em uma análise da Lei nº 11.959/2009 (marco regulatório da pesca no Brasil) para realizar o relatório inédito “A Política Pesqueira do Brasil” (da Oceana Brasil), ela decidiu nadar em mar aberto e até praticar canoa a vela havaiana.
“Tive essa necessidade de me relacionar com o mar porque o estudo me trouxe essa consciência do oceano como um manancial de espécies, de alimentos e da sua relação primordial com todo o ecossistema. É um universo que precisa ser respeitado”, observa Kamila, que integra a organização filantrópica Instituto Clima e Sociedade (ICS).
Formada em direito, ao debruçar-se sobre a legislação da pesca, Kamyla percebeu que a falta de governança e de segurança jurídica impactam bastante essa atividade no país. “É uma espécie de carta de princípios, incapaz de promover a governança do setor. Ao contrário, abre lacunas imensas sobre a gestão pesqueira. Não há sistema de informações institucionalizado. Não sabemos, por exemplo, a situação dos estoques das espécies pescadas”, lamenta.
1. Como você avalia a governança do país para gerir as nossas pescarias?
Quando comecei a estudar a legislação de pesca, pude perceber que os problemas de governança em outras gestões de recursos ambientais se repetiam nessa Lei. São problemas da estrutura de Estado, que precisam ser sanados para fazer a gestão de governança assim como a de estrutura jurídica. A Lei da Pesca em si traz, de uma forma muito genérica, uma espécie de rascunho de uma política de gestão pesqueira. É uma legislação que parou em suas generalidades, não entrou no operacional, que é fundamental para definir quem são os órgãos responsáveis, as obrigações que cabem a cada uma dessas instituições. É como se fosse uma carta de princípios, e não se faz gestão pública com uma carta de princípios.
2. Quais são os aprimoramentos que essa legislação requer?
Precisamos de uma estrutura regulatória mais consistente, considerando que a gestão da pesca conversa com outras áreas. Quando se fala de pesca, estamos falando do recurso dos oceanos, da zona costeira do Brasil, da proteção da biodiversidade marinha e dos rios. Toda essa legislação requer uma gestão pesqueira de gerenciamento dos recursos hídricos, como a pesca que se dá nas áreas interiores. Não é possível ficarmos parados numa carta de princípios como essa que a Lei da Pesca estabelece.
3. Você avalia que existem outras políticas públicas brasileiras que serviriam de exemplo ou de caminho a ser seguido na reformulação da política pesqueira brasileira?
Na pesquisa, consideramos que existem muitas similaridades entre as legislações da pesca e a de recursos hídricos. Só que o gerenciamento de recursos hídricos tem a estrutura de governança e instrumentos estabelecidos. O que poderia ser adaptado para a pesca. Trata-se da Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico (ANA), que foi criada para administrar essa estrutura de governança. Falta para a pesca uma gestão semelhante.
4. Quais são as consequências de uma política pública ineficaz, que não funciona? Existe algum exemplo emblemático que ilustre essa fragilidade?
De imediato, acaba não otimizando a gestão pesqueira, criando uma situação de sobrepesca, de esgotamento dos recursos pesqueiros. É ruim para o pescador, que deveria encontrar, naturalmente, o peixe no mar. E se falta o peixe? Afeta a situação econômica direta das famílias e de toda uma cadeia produtiva em torno do pescado. Uma questão importante é que todo o sistema de informação que a Lei da Pesca prevê sobre esses recursos pesqueiros nunca saiu do papel. Não temos nenhuma informação sistematizada. Os relatórios e estudos da Oceana, por exemplo, apontam que sequer sabemos, adequadamente, sobre os estoques dos recursos pesqueiros principais do país, que são explorados à exaustão. Hoje, exige-se a implantação urgente de cotas para esses pescados sob o risco do desaparecimento dessas espécies da costa.
5. Quais são os maiores desafios que a sociedade vai enfrentar nesse processo de reformulação da política pesqueira brasileira?
Acredito que, no primeiro momento, precisamos de diálogo para as mudanças com as diversas pontas desse problema, porque está ruim tanto para o meio ambiente, quanto para a situação econômica do pescador e do país. O desafio é reconhecer a necessidade de diálogo. Sem isso, essa legislação não vai sair do lugar.
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