A socióloga Paula Johns é diretora-executiva e uma das fundadoras da ACT Promoção da Saúde, organização não governamental que, desde 2006, atua na promoção e na defesa de políticas de saúde pública. Ela participou ativamente da construção e ratificação pelo Brasil da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco (CQCT), o primeiro tratado internacional de saúde pública da história da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Uma das lideranças à frente da recém-lançada campanha Duplo Impacto, apoiada pela Oceana, que denuncia as indústrias de álcool, ultraprocessados e tabaco como as maiores poluidoras de plástico do mundo, Paula atualmente também representa a sociedade civil na elaboração de uma nova regulamentação internacional – dessa vez trata-se do Tratado Global Contra a Poluição por Plástico. Debatido no âmbito da ONU, esse processo terá sua próxima reunião em Genebra, na Suíça, entre os dias 5 e 14 de agosto deste ano.
Nessa edição da Oceana Entrevista, ela traça paralelos entre as negociações internacionais para o controle do uso do tabaco, que aconteceu há mais de vinte anos, e a atual iniciativa que visa frear a poluição plástica, avaliando as políticas públicas em defesa da saúde e do meio ambiente que ainda precisam ser implementadas, tanto no Brasil como internacionalmente.
Quais são as semelhanças do processo que você vivenciou com a Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco e o atual Tratado Global Contra a Poluição Plástica?
A primeira semelhança é a demanda, por parte da sociedade civil, de que esses dois processos tivessem o escopo de Tratados Globais legalmente vinculantes. A segunda semelhança é que essas negociações ocorreram pela constatação de realidades de crise, de emergências globais que nenhum país consegue resolver isoladamente, a não ser por acordos multilaterais. A poluição plástica não conhece fronteiras. Então, é preciso lidar com isso a partir das perspectivas nacional e global. Outra similaridade é a resistência do setor privado. Atualmente, ela é feita principalmente pelos produtores de petróleo, que tentam reduzir o Tratado contra a poluição por plástico de modo que ele foque somente no manejo de resíduos.
Como a regulação do tabaco pode servir de referência para que o Brasil leve um posicionamento firme para a próxima reunião do Tratado Global, no sentido de, efetivamente, reduzir a crise mundial do plástico?
O Brasil tem um histórico muito importante, sobretudo na área da saúde, de levar posicionamentos fortes a esses fóruns internacionais Há duas décadas, nosso país era o maior exportador de folha de tabaco no mundo e o segundo maior produtor. E, apesar disso, conseguiu ter uma posição muito forte durante as negociações: discutiu-se uma transição justa e um plano de diversificação para as áreas cultivadas com tabaco. Enfim, foi uma discussão muito intensa e o Brasil nunca abriu mão dos seus objetivos de priorizar a saúde. Esse histórico também fez diferença em outras negociações internacionais, quando olhamos, por exemplo, para a questão da quebra de patentes no caso do HIV AIDS – um outro marco bastante importante na agenda de saúde global.
Outra característica é o reconhecido talento da nossa diplomacia. Esperamos que ela, agora, esteja a serviço de avançar em uma regulação que seja efetiva. O Tratado [contra a poluição por plástico] não é só ambiental, porque está ligado diretamente aos impactos que esse material tem na saúde humana e planetária. Então, eu acho que o Brasil tem todas as condições de levar uma posição bastante forte para a mesa de negociação.
O que esse processo pode nos ensinar em relação ao envolvimento da sociedade civil para a implementação de uma política pública, tanto global como nacional?
A participação da sociedade civil também foi sempre essencial para demandar que o governo cumpra com o seu papel de adotar uma política pública de bem comum, que seja de interesse público, e não privilegie os interesses privados. No Tratado do tabaco, inclusive, tem um artigo que reconhece a participação da sociedade civil como fundamental para que se tenha conseguido alcançar um Tratado efetivo. Caso contrário, não teríamos chegado aonde chegamos em termos de efetividade das medidas propostas.
Quais são as principais garantias/ações que o Tratado Global Contra a Poluição por Plástico deve assegurar?
Ele deve assegurar que o interesse público prevaleça sobre o interesse privado, que não seja somente um Tratado de manejo de resíduos e que tenha abertura para ser atualizado com base nas melhores evidências científicas, sem conflitos de interesse. Porque são muitas complexidades, inclusive, de quem está produzindo evidência a respeito de quê.
O volume de pesquisas científicas sobre microplásticos no corpo humano tem aumentado de modo exponencial, e essa contaminação já é considerada uma questão de saúde pública. Por que até agora nenhuma medida ou política pública foi implementada para proteger a população dos riscos que essa contaminação pode causar?
Eu costumo dizer que o fato de estarmos negociando um Tratado Global para lidar com esse problema da poluição por plástico é porque ele já está em um estado para além de crítico, já é uma emergência. Porque, senão, você nem chega nesse estágio de reconhecer que é um problema, levando em consideração todo o negacionismo que existe em torno do assunto. Quando um tema impacta os interesses privados de alguns setores, isso acaba protelando uma discussão que deveria estar acontecendo há muito mais tempo, especialmente quando olhamos para o tamanho dessa crise – para além da parte mais visível, da poluição que a gente enxerga, é necessário considerar cada vez mais, também essa parte menos visível aos olhos, os microplásticos. Quando você olha para os fatores de risco para as doenças crônicas, por exemplo, que é a área que a ACT mais foca, a poluição do ar está ligada diretamente à poluição plástica, da produção ao consumo e ao descarte, as conexões são muitas.
Qual o propósito principal da campanha Duplo Impacto e de que modo ela se relaciona com a poluição por plásticos?
Como a ACT sempre focou em temas de saúde, nos impactos à saúde, a campanha tem como objetivo demonstrar essa relação total entre saúde e ambiente, entre saúde e clima, e dizer que não dá para separar as coisas — está tudo interconectado. E que as soluções que você pode adotar para melhorar o resultado do ambiente também melhoram a saúde, e vice-versa. Em linhas gerais, estamos falando de medidas regulatórias que mudam o ambiente e que não focam em um comportamento individual. Acho que esse é um ponto muito importante.
A gente precisa garantir que a legislação, as medidas regulatórias e as políticas públicas olhem para como podemos mudar coisas que já foram de outra forma no passado. Por exemplo, no caso do plástico: o reuso, a reutilização, outros materiais, enfim. Tem muita coisa que pode ser feita, e esse é outro ponto importante, mesmo enquanto estamos negociando o Tratado.
Um exemplo, no caso do tabaco, é que o Brasil foi o segundo país do mundo a adotar imagens de advertência nos maços (o primeiro país foi o Canadá), e isso aconteceu no processo de negociação do Tratado. Ou seja, a própria negociação estimula que as políticas públicas nacionais sejam debatidas, levantadas e implementadas.
Em relação à poluição causada por plásticos, representantes da indústria química insistem em afirmar que o problema não é o produto em si, mas o modo errôneo que o descarte é feito pelas pessoas e pela administração pública, seguido da gestão desses resíduos. Qual sua avaliação sobre essa posição?
Essa posição da indústria química é o típico negacionismo, feito para protelar uma regulação que está por vir. Você pode observar que, normalmente, acontece isso: o setor que está ameaçado – no caso, a indústria plástica, a indústria química – se reúne para fazer campanhas que reforçam a necessidade daquilo. São sempre argumentos de emprego, de economia, de quantas pessoas vão perder emprego por conta disso.
Mas, pela experiência, também costumo dizer: quando o argumento é de perda de emprego, é porque eles já sabem que perderam no argumento de mérito. Porque eu acho que não justifica. No caso do plástico, você vê muita coisa nessa linha de “vamos falar sobre plástico”, mostrando várias aplicações do plástico que, por si só, não são as mais problemáticas e não são nem as que estão sendo questionadas.
Precisamos começar reconhecendo a necessidade de discutir e caminhar para um banimento do plástico de uso único – o que já vai ser um grande avanço. É fundamental que isso aconteça. Em paralelo, juntamente com isso, banir os químicos que já são comprovadamente nocivos à saúde. E, além disso, redesenhar, repensar o design do produto, porque, em geral, um design de produto é de uma finalidade única e exclusivamente de marketing, de lançar novos produtos no mercado e atrair novos consumidores. Ou seja, é essa frege do consumismo exacerbado. Mas precisamos, de alguma maneira, simplificar um pouco esse design de produto, de forma que o que é necessário seja reciclado.
Sabemos que a solução para a poluição por plástico não passa somente pela reciclagem, mas por um conjunto de medidas que vai muito além disso e, inclusive, por rediscutir a produção, olhando para os subsídios e para o que está sendo incentivado economicamente. E não me refiro só aos incentivos econômicos, porque, às vezes, tem outras classes de incentivo que viabilizam uma logística de produção. É preciso olhar para esse todo.
Por exemplo, voltando à campanha Duplo Impacto, a gente quer demonstrar que coisas que são super problemáticas do ponto de vista da saúde – no caso, a alimentação, o consumo de tabaco e o consumo do álcool –, também estão diretamente relacionadas ao aumento da produção plástica nessas indústrias, que são as grandes campeãs em poluição. Elas, deliberadamente, passaram a usar as embalagens plásticas para vender em maior quantidade os seus produtos. Antigamente, se comprava uma garrafa de um litro de Coca-Cola de vidro, que era retornável. Hoje em dia, você tem aquelas garrafas de três litros, o que faz com que o volume de vendas seja maior também. Portanto, o produto e a sua embalagem são problemáticos.
Quais são as principais ações que o Estado brasileiro deveria priorizar para conter, efetivamente, os impactos sociais, ambientais e econômicos da poluição por plástico? O Projeto de Lei 2524/2022 se insere entre essas prioridades?
Sem dúvida, o PL 2524/2022 é superimportante. Para o padrão do Congresso, ele nem está tramitando há tanto tempo assim. Mas se a gente pensar na urgência do tema, ele já deveria, ou poderia, ter avançado muito mais – se não fosse pela resistência do setor. É fundamental termos medidas regulatórias a nível nacional para começar a repensar esse modelo de produção e consumo em uma economia que seja minimamente circular. Embora critique-se uma economia circular de plástico. Mas, enfim, pensar um modelo econômico que não seja de descarte absoluto de tudo e que a gente reutilize mais coisas, descarte menos. E, é claro, esse projeto de lei é o melhor caminho para isso, um caminho dos mais importantes e fundamentais para avançarmos nesse sentido.
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