“Tanto a pesca como o meio ambiente serão beneficiados com o Projeto de Lei 4789/2024” - Oceana Brasil
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Maio 29, 2025

“Tanto a pesca como o meio ambiente serão beneficiados com o Projeto de Lei 4789/2024”

Por: Oceana

O TEMA: Lei da Pesca

Martin Dias, diretor científico da Oceana. Foto: Oceana/Nathalia Carvalho

 

A cadeia produtiva da pesca movimenta todo o Brasil, e se engana quem pensa somente nos mais de 8 mil quilômetros do nosso litoral. Envolvendo milhões de profissionais, ela gera emprego e renda, cultura e segurança alimentar, e movimento as economias local, regional e nacional. Mas, para que isso aconteça, precisa ser sustentável – tanto na proteção das espécies e de seus ecossistemas, como do ponto de vista da base legal que estabelece essa política pública.

Nessa edição da Oceana Entrevista, conversamos com o oceanógrafo e mestre em Ciência e Tecnologia Ambiental pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Martin Dias. Diretor científico da Oceana, ele analisa o cenário da pesca no Brasil, as atuais políticas públicas para o setor, seus principais desafios e ainda apresenta algumas das propostas da organização focadas em contribuir para um equilíbrio entre pesca e proteção da fauna marinha e dos oceanos.

O Brasil possui uma gestão pesqueira à altura do que a atividade de pesca significa para o país e para os milhares de brasileiros que dependem dela como fonte de renda, e de afirmação de sua cultura e cidadania?

A Auditoria da Pesca 2023 produziu um retrato bastante crítico da gestão pesqueira nacional nos últimos anos, marcada pela alta rotatividade e pela instabilidade institucional, pelo baixo orçamento e pela ausência de informações sobre a produção pesqueira nacional. Parece que estamos diante daquele dilema: o que veio antes, o ovo ou a galinha? Termos uma autoridade pesqueira estável e sólida é o que vai resultar em políticas públicas de qualidade para a nossa pesca? Ou é a fragilidade das nossas políticas públicas de pesca que possibilitam tamanha instabilidade institucional? Obviamente, há um processo de retroalimentação nesse cenário.

A situação da gestão pesqueira atual permanece a mesma há décadas e o ponto de partida para conter esse ciclo vicioso é o aprimoramento da política pesqueira – esse marco legal que rege, que dita as regras e estabelece procedimentos para a atuação na atividade. Ela deve iniciar e guiar o fortalecimento institucional do órgão gestor da pesca. Não temos estatística pesqueira porque é perfeitamente legal, hoje no Brasil, haver pesca sem monitoramento, nem dados. Também não temos fóruns de participação social para a tomada de decisão estabelecidos em lei e, por isso, o ato de fazê-los existir e funcionar é tão somente uma decisão do gestor da vez. Não havendo obrigações claras para nossa autoridade pesqueira, abre-se espaço para orçamentos irrisórios e insuficientes para atividades-chave, como ordenamento, monitoramento e controle da pesca.

Devemos ter em lei aquilo que é o mínimo para a pesca nacional e, a partir disso, ir crescendo e nos consolidando. Mas o que temos hoje como linha de base, estabelecida na Lei 11.959/2009, é muito ruim. Daí a urgência de reformá-la e modernizá-la, como propõe o Projeto de Lei 4789/2024.

Qual é a atual situação desse Projeto de Lei?

O Projeto de Lei 4789/2024 é fruto de um trabalho verdadeiramente colaborativo e transparente. Colaborativo, no sentido de que muitos pescadores e pescadoras, representantes do setor empresarial e de relevantes entidades da pesca de todo o país se dedicaram para a sua elaboração – e o resultado desse empenho é um projeto que traz consigo diferentes visões, aspirações e necessidades para a pesca em nosso país e para a sua gestão, de forma equilibrada e propositiva.

E um projeto que também é transparente, o que considero um valor fundamental. Toda a construção foi bastante horizontal, com discussões livres e divergências sendo reconhecidas e negociadas. Tudo isso cria uma importante relação de confiança entre as partes.

É por isso que enxergo o processo político com grande otimismo. São muitas fortalezas, que evidenciam esses consensos e acordos já consolidados, e acredito que isso vai impulsionar a aprovação do PL no Congresso Nacional, até que ele se torne, efetivamente, uma lei da pesca.

O PL está agora na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e depois seguirá para a Comissão de Meio Ambiente (CMA). E a nossa expectativa é de que os parlamentares se posicionem favoravelmente em ambas as comissões, porque tanto a pesca, como atividade produtiva, quanto o meio ambiente, como ecossistema que sustenta essa atividade, serão beneficiados por essa nova legislação.

Uma das questões trazidas à discussão pelo PL 4789/2024 é justamente a participação social. Como a Oceana avalia a atuação do Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca (Conape) e dos Comitês Permanentes de Gestão Pesqueira (CPGs), dentro da atual estrutura do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA)?

Após anos sem reuniões do Conselho e dos Comitês, temos visto todos os CPGs e o próprio Conape bastante atuantes hoje, o que é um excelente sinal. Mas ainda há espaço para melhorias, entre as quais eu destacaria dois pontos. No caso dos CPGs, muitas proposições e demandas dos Comitês não têm qualquer seguimento, deixando a sociedade sem nenhuma devolutiva. Por exemplo, tivemos recomendações claras no CPG Demersais SE/S para o ordenamento emergencial da pesca de arrasto de profundidade. No entanto, já se passou praticamente um ano desde que elas foram aprovadas, e até agora nada foi feito. O governo também não explicou à sociedade por que não houve o cumprimento dos prazos acordados. Esse cenário gera reflexões sobre a necessidade de tornar as decisões dos CPGs mais vinculativas, mesmo que seu papel seja consultivo e de assessoramento.

Em relação ao Conape, também há espaço para melhorias, sobretudo na definição das pautas e à identificação do que deve ser considerado prioritário pelo Conselho. Por exemplo, o MPA, sem sequer consultar o Conape, adotou uma posição contrária a dois projetos de lei que tramitam atualmente no Senado Federal: o já citado PL 4789/2024 – que moderniza a política pesqueira nacional, e o PL 4470/2024 – que altera aspectos da política atual relacionados à aquicultura. São propostas que surgiram dos próprios setores pesqueiro e aquícola, evidenciando o interesse desses segmentos, que estão representados no Conape. Mas quando o MPA se posiciona contrariamente, sem qualquer escuta ao seu próprio Conselho, entendo que isso explicita a fragilidade desse fórum.

Importante destacar que o PL 4789/2024 apresenta proposições bastante assertivas para garantir a participação social, visando justamente garantir o estabelecimento desses fóruns de discussão e de seu pleno funcionamento. O Projeto de Lei ainda vincula a esses ambientes as tomadas de decisão quanto a elementos chave da gestão pesqueira, como a concepção e a implementação de um Plano de Pesquisa Pesqueira, Assistência Técnica e Extensão da Pesca, bem como a destinação e o uso dos recursos para o desenvolvimento da atividade pesqueira.

Recentemente, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) apresentou ao Conape uma proposta de atualização da lista das espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção. Qual a situação dos recursos pesqueiros dentro dessa lista e quais as soluções para a reversão deste quadro?

Das 1.545 espécies listadas nessa nova proposta, 122 são peixes marinhos. E cerca de 80 deles são recursos pesqueiros, espécies comerciais de interesse das pescas artesanal e industrial. Quando comparamos essa nova lista com a anterior, de 2014, é visível que essa estratégia não está resolvendo o problema.

Veja só: entre os 74 recursos pesqueiros considerados ameaçados em 2014, apenas dois saíram dessa classificação; enquanto dez deles estão hoje em estado de conservação pior do que antes. Os demais seguem na mesma. E a lista nova ainda inclui seis outras espécies, como é o caso da corvina, que têm grande importância para a pesca nacional.

Esse é um tema complexo. É preciso entender que a Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção é um instrumento vinculado à Política de Biodiversidade, e que possui uma fundamentação técnica e jurídica. Ela utiliza critérios da IUCN [União Internacional para Conservação da Natureza] para avaliar a situação de todas as espécies da fauna brasileira e dizer quais estão sob risco de extinção. Essas espécies passam, então, a ser objetos de Planos de Ação Nacionais, os PANs, que visam combater as fontes de ameaça a essas espécies e, assim, preservá-las.

Mas a situação é diferente quando se trata de espécies da nossa fauna que são de interesse da pesca. Nesses casos, nem a metodologia da IUCN, nem seus critérios, muito menos os PANs, se mostram instrumentos adequados para aplicação em larga escala. Nestes casos, deveríamos trazer maior peso a outras metodologias, como as avaliações de estoques, e solucionar problemas como a pesca excessiva por meio de Planos de Gestão Pesqueira.

Acontece que, se de um lado temos uma Política de Biodiversidade muito bem formalizada e alicerçada juridicamente, no lado da pesca temos um gigantesco vácuo normativo. Essa é a causa raiz e que precisa ser enfrentada.

Entre as espécies ameaçadas listadas desde 2014 (pela Portaria 445/2014) está o pargo, um dos pescados mais importantes para a exportação no Brasil. A safra de 2025 começou em maio, completando mais um ano sem medidas de ordenamento e gestão que garantam seu uso sustentável, como um limite de captura. Qual pode ser o resultado dessa ausência de regramento para a preservação da espécie e para a continuidade da sua pescaria?

O que está acontecendo na pesca do pargo é gravíssimo. Como pescar espécies ameaçadas é um crime ambiental, era de se esperar que a pescaria fosse completamente fechada – o que geraria uma enorme crise política e impactos socioeconômicos consideráveis. O próprio MMA reconheceu, em 2018, que é possível seguir pescando, desde que uma série de medidas previstas no Plano de Recuperação da espécie seja cumprida. Em caso de descumprimento, aí sim, haveria uma suspensão da atividade.

Ocorre que, passados sete anos da existência deste Plano, muito pouco se avançou no uso sustentável do pargo, persistindo os altos níveis de sobrepesca e de pesca ilegal. Com isso, é como se o próprio MMA estivesse, hoje, sendo conivente com a pesca excessiva de uma espécie que o próprio órgão classifica como em risco de extinção.

Curiosamente, a melhor solução para este problema está na mesa dos ministérios (MPA e MMA): em 2024 o CPG Demersais N/NE concordou com as recomendações científicas de aumentar o controle sobre a espécie, adotando um limite anual de pesca e um tamanho mínimo para a captura. Estas medidas levariam a uma redução significativa da mortalidade por pesca, justificariam a manutenção de algum nível de pesca e ainda possibilitariam a recuperação gradativa do estoque. No entanto, mais uma vez, nada foi implementado para o início da safra de 2025. O cenário atual é, portanto, o pior possível. O governo, em uma corresponsabilidade do MMA e do MPA, precisa decidir entre o uso sustentável, atualizando o regramento da pescaria, ou o fechamento integral da atividade – conforme consta na legislação vigente. O que não pode acontecer é justamente o que está acontecendo: a manutenção da ausência de controle e da sobrepesca.

O que essa inação indica sobre as posturas do governo e sobre a posição do MMA e do MPA, enquanto autoridades responsáveis pela gestão dos recursos pesqueiros do país?

Vivemos uma espécie de crise de identidade, um problema grave que deriva da pouca clareza quanto às responsabilidades e competências institucionais dos dois órgãos relacionados à gestão pesqueira, sobretudo quando tratamos desse caso dos recursos pesqueiros listados como ameaçados pelo MMA. Essa crise precisa ser solucionada, e os papéis e responsabilidades das autoridades precisam ser claramente definidos.

Explico: a Secretaria de Bioeconomia do MMA e o MPA são as autoridades pesqueiras do país. Em tese, seu papel é gerir, de forma conjunta, o uso sustentável dos recursos pesqueiros, de espécies como sardinha, corvina e camarão, dentre outras. Mas quando estes recursos são eventualmente listados como “em risco de extinção”, entra em cena um terceiro ator que é a Secretaria de Biodiversidade, Florestas e Direito dos Animais, do MMA. Esta é a autoridade responsável por espécies ameaçadas, como mico-leão-dourado e onça-pintada, mas aí também o pargo, a garoupa e mais tantos outros recursos pesqueiros listados.

Por causa dessa fragmentação, desse dilema, caímos em uma espécie de limbo administrativo, onde não sabemos quando uma espécie deve ser administrada sob a competência daqueles que gerenciam a pesca e/ou quando ela deve ser tratada sob a responsabilidade daqueles que preservam a fauna ameaçada. Parece uma pequena diferença, mas há aí um abismo sem pontes que divide a gestão pesqueira já há bastante tempo.

O Brasil é muito competente em produzir essas listas e incluir recursos pesqueiros nelas, mas pouco eficiente em definir quem resolve o problema. Já foram feitas algumas tentativas de lidar com esta questão, como dar autonomia aos CPGs para tratar da gestão de recursos pesqueiros ameaçados – o que não teve êxito. Outra iniciativa foi criar Grupos de Trabalho interministeriais (coordenados pelo MMA) para discutir recursos pesqueiros ameaçados – mas eles foram sempre transitórios.

Por outro lado, os problemas são permanentes. Enquanto não tivermos uma reforma ampla da nossa política pesqueira, como propõe o PL 4789/2024, essas instabilidades e inconsistências seguirão acontecendo. Nesse cenário, quem perde são as espécies e, consequentemente, toda a cadeia produtiva da pesca.